Diga-se o que for, apontem-se erros e excessos, problemas de timing, protagonismo e exploração política, mas é inquestionável que o Relatório Final da CPI do Senado veio para ficar, marcar posição e desafinar o coro dos bolsonaristas.
Não só o Relatório, um portento de dados, informações, depoimentos e provas, mas todo o trabalho da Comissão, que se estendeu por seis meses e contagiou a opinião pública.
Pode haver algo de rebarbativo, de extemporâneo ou equivocado no texto, mas a partir dele deixou de ser possível — se é que algum dia foi — negar o que está estampado em letras maiúsculas na tragédia sanitária que desde março de 2020 implicou a morte de 605 mil brasileiros. O governo federal é o responsável maior pelas proporções adquiridas pela contaminação. Comandado por Jair Bolsonaro, ele pouco fez para enfrentar o problema, contribuindo, ao contrário, para agravá-lo. Houve incúria, irresponsabilidade, ignorância, desdém, desprezo pelas vítimas e intenção explícita de manipular a doença com finalidades eleitoreiras. Crimes em cascata, agora documentados.
Pandemias são sempre fenômenos agressivos, violentos. Para contê-las, as sociedades precisam mobilizar todos os seus recursos. Necessitam da coordenação político-administrativa dos organismos estatais, dos governos, das autoridades. Sem empenho estatal e articulação, sem campanhas cívicas e engajamentos, o sucesso é pequeno. Cresce, em contrapartida, o trabalho de médicos, enfermeiros, sanitaristas, pesquisadores e cientistas. No Brasil, tivemos a sorte de ter um SUS com capacidade de resposta, que só não fez mais porque foi atrapalhado. Mesmo assim, o sistema acolheu, tratou e fez o possível para acelerar o processo de imunização,
Faltaram as vigas mestras governamentais, que foram subtraídas por agentes do governo federal, que covardemente apunhalaram os cidadãos pelas costas. O boicote foi escandaloso, sustentado por supostos irracionais, pela burrice, pela grosseria e por um sem-número de malfeitos políticos, eleitorais, ideológicos. A corrupção escancarou sua presença. Os brucutus bolsonaristas abusaram das escaramuças sórdidas para manter o poder, valeram-se de táticas rasteiras, mentiras, ameaças. Dia após dia, como se estivéssemos em outro planeta, exibiram uma profunda ignorância e de um completo desrespeito pela vida e pela saúde dos brasileiros.
O Relatório deixou tudo isso evidente. Desnudou o presidente e seu governo.
Durante meses, a CPI expôs um elenco de crimes. Exibiu a perversão de Bolsonaro, seu prazer em ver o sofrimento da população, sua falta de empatia e compaixão, seu cinismo hipócrita, a facilidade com que manipulou a tragédia para ocultar sua incompetência. Foi devidamente acompanhado por assessores, ministros, auxiliares, empresários, médicos, empresas de duvidoso caráter, corruptos e corruptores, todos irmanados para usar a tragédia para “fazer política”, ganhar algum brilho e impulsionar negócios. Foi um festival de absurdos.
Não causou surpresa que o Relatório tenha indiciado cerca de 80 pessoas. Poderia ser um número maior.
E agora? Chegaremos às barras dos tribunais, para a devida responsabilização penal dos culpados? Pode ser que não, pode ser que somente se atinjam figuras de segunda ordem. Afinal, estamos no terreno da política e, nele, o rei está nu mas ainda tem poder. A PGR tem estado sistematicamente ao lado do presidente, assim como o Centrão. Ambos podem atravancar e esvaziar o processo, que, em condições normais, teria que culminar no impeachment presidencial e na prisão de seus asseclas.
Mas a institucionalidade política do Estado brasileiro vem mostrando que está a recuperar parte da musculatura que lhe foi surrupiada a partir de 2019. A CPI provou isso. Ela mostrou que há espaços para articulações que dignifiquem a responsabilidade cívica dos governantes, a democracia, a República, a Constituição. Se continuar nesta trilha, o futuro pode voltar a ser imaginado como repleto de promessas positivas.
O fato de o rei estar nu, exposto em praça pública sem qualquer manto que lhe esconda as vergonhas, é algo que não se pode arquivar, nem esquecer. Deve ser comemorado.