Diário do Confinamento 14:
Para além do moralismo

Stephen Killeen, Futuristic cyborg clone dark nightmare vision
Stephen Killeen, Futuristic cyborg clone dark nightmare vision
A divulgação do vídeo da reunião de 22 de abril mostrou o nível a que chegamos, uma tragédia mais extrema do que havia sido antevisto, o pior dos pesadelos

Ninguém pode dizer que ficou surpreso com a divulgação, um mês depois, do vídeo da reunião ministerial de 22 de abril.

Jornalistas falavam dele desde que Moro fez as denúncias. Analistas políticos, ativistas, pessoas prudentes e cautelosas, todos sabiam o que se iria encontrar.

Mas assistir ao vídeo foi como receber um soco no estômago.

O uso abundante de palavrões não é o ponto. O “baixo calão” tem força argumentativa entre nós,  é um veículo de explicitação de emoções. Não se trata de ser moralista aqui. O problema aparece quando o palavrão trava a argumentação: quando você não tem o que dizer, quando você quer ser expressivo ao extremo e atropela as palavras, livrando-se delas. É como dar murros na mesa: performance, ênfase, que pode valer desde que você forneça, aos interlocutores, uma mensagem consistente, que fomente o diálogo em vez de bloqueá-lo.

O palavrão pode ser admitido em uma reunião política. Em ambientes mais fechados, sem particular dimensão simbólica, vale quase tudo. E quanto mais limitados intelectualmente são os participantes, mais baixaria tende a ser praticada. Pode ser um palavrão, ou o recurso insistente à piada, ao deboche, ao diversionismo. Pode ser um gesto, um controle malicioso do tempo de fala e da lista de oradores. Quanto mais baixa a qualidade dos participantes, mais prevalece uma mecânica de “vale tudo”.

Mas em 22 de abril realizava-se uma reunião ministerial. Que falassem palavrões vá lá, mas que acima de tudo tratassem de assuntos sérios, dissessem coisa com coisa. Nada foi dito sobre saúde, emprego, renda, educação. Nada. No recinto, ecoaram tão somente os impropérios, as manifestações de ódio, ataques à ordem constitucional e incentivos à violência.

Não era uma reunião pública, não precisavam jogar para a platéia. Um ajuste de contas, um freio de arrumação no governo? Nada disso justificaria que se transformasse a assembléia em um circo, em uma conversa de quadrilheiros, de mafiosos, sem dignidade outra que não os interesses mais sórdidos. Cada intervenção ali feita veio com a marca da ignomínia, da mediocridade, da hipocrisia, da falsidade, da alienação. Um bando de serviçais, fardados e empetecados, com cara de paisagem, como se nada de grave estivesse a ocorrer no País. Capazes de proferir raciocínios desconexos, planos mirabolantes, argumentos irracionais, estapafúrdios, de uma perversão única.

Dizia-se antes que haveria um “ministério de técnicos e de notáveis”. O que se tem visto é um agregado de lunáticos babando para o chefe da expedição. Pensar que aquela gente, com aqueles modos e aquela entonação, receba apoio social é admitir que o povo, no fundo, é mais estranho do que jamais pensamos. O monstro está em nós, habita nosso modo de ser, sem que nos tenhamos dado conta. Em política, chegar atrasado tem um custo, implica castigo.

Como então a opinião pública aceita que o presidente da República ache necessário “armar a população” para que ela reaja aos decretos sanitários estaduais e municipais? O “povo armado”, para ele, é a condição para que se evite a “ditadura” que estaria em marcha. Trata-se de uma completa insanidade. Propôs-se sem mais a formação de milícias, a matança de uns por outros, uma espécie de “desobediência” armada. Se isso não for motivo para a interdição do presidente, não dá para saber o que mais seria necessário.

JMB foi corroborado pelos ministros. Weintraub sugeriu prender os “vagabundos” do STF. Foi seguido por Damares, que sugeriu o mesmo para os governadores e prefeitos que insistirem no isolamento, que para ela é uma restrição à liberdade, não uma medida sanitária. E teve Paulo Guedes dando o ar da graça, não só para coonestar o presidente na proposição de formas escancaradas de militarização, como para se exibir como um pavão intelectual, que leu Keynes no original pelo menos três vezes. Quanto provincianismo, dir-se-ia. Além de nada propor para salvar a economia, o “posto Ipiranga”ainda teve tempo de apresentar sua ideia de incentivar o turismo por meio de resorts e engajar os jovens em  alguma “missão”. Terminou dizendo que o bando ali reunido seria integrado por pessoas “diferentes”, distantes do establishment.

Foi um festival de indigência, provocação, ameaças. Dois dias depois da divulgação do vídeo, Sérgio Moro foi à TV dizer que nada falou diante daquele flagrante delito porque não havia clima para o “contraditório”. Como assim?

Ver é diferente de saber e de ouvir falar. Prova o que se comentava nos bastidores. O vídeo pôs a nu um montão de coisas que estavam sendo varridas para baixo do tapete. Mostrou o nível a que chegamos, um pesadelo maior do que se havia previsto.

O problema JMB não é só político e econômico. Também é sociocultural, porque se alimenta da ingenuidade popular, da ignorância e do obscurantismo. É moral, porque lhe falta dignidade. É religioso, porque lhe falta compaixão e tem, como lema, “matai-vos uns aos outros”. E é estético, porque lhe falta arte, beleza e sensibilidade.

Não é só um problema, mas uma tragédia. A destruição está em plena marcha. Entramos num beco obscuro, de saída difícil. Espero estar errado.

“Democratas de todas as colorações, uni-vos!”. Não há outro caminho. O jeito é torcer para que o encontremos.

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Muniz Ferreira
4 anos atrás

Excelente, como sempre. Mais uma análise precisa, que transforma em texto nossas percepções e emoções à flor da pele.

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