Diário do Confinamento 15:
Uma gangue entre nós

Manabu Mabe, Serigrafia
Manabu Mabe, Serigrafia
Independentemente dos resultados no plano criminal, o inquérito dedicado a investigar a indústria das fake news fere  o bolsonarismo na jugular

É bem possível que o inquérito aberto pelo STF para apurar a disseminação de fake news não dê em nada em termos jurídicos, ou seja, não ponha ninguém na cadeia. Especialistas dizem que é complicado um órgão ativar uma investigação que o tem entre as vítimas. Seria advogar em causa própria. Como disse William Waack em sua coluna, o inquérito “transforma o STF em investigador e juiz ao mesmo tempo”, o que é estranho à cultura jurídica predominante.

O tema tem meandros complicados. Fico só com o essencial: independentemente dos resultados no plano criminal, as decisões do ministro Alexandre de Moraes ferem  o bolsonarismo na jugular. Desvendam a rede que intoxica a vida política e cultural com notícias falsas, boatos, intrigas e ataques a instituições, pessoas e procedimentos. Sem as fake news, é como se o bolsonarismo perdesse uma de suas pernas e passasse a enfrentar maior dificuldade para prosseguir arrastando pessoas pela senda do autoritarismo e da mitificação, extraindo os cidadãos do campo da civilidade e da democracia.

Em termos políticos, foi o maior golpe sofrido pelo bolsonarismo até agora: uma espécie de mata-leão, que vence pelo sufocamento do adversário. Não à toa, as reações do Planalto e e de seus assessores foram furibundas. Espumaram de “indignação”, esbravejando em nome da “liberdade de crítica” e da resistência à “criminalização de opiniões”, falando em nome de uma visão tacanha e grotesca de democracia, hostil à representação e à soberania popular, a dos cidadãos. Houve manifestações histéricas, discursos apopléticos e irresponsáveis, como do deputado Bolsonaro 02, que  que defendeu abertamente uma intervenção militar para “restabelecer a harmonia de poderes”. As FFAA, para ele, poderiam “zerar o jogo” para, depois, “voltar o jogo democrático”.por ordem na casa.

O ativismo bolsonarista persegue com obstinação uma meta: destruir a política democrática, seus hábitos e valores, seus sujeitos e suas instituições. O movimento não defende a liberdade de expressão, mas sim o uso da livre expressão para restringir a liberdade. O mote é: pensem conforme meu credo e calem-se para sempre. A crítica é livre, para os bolsonaristas, desde que não os afete, não seja contra eles. Atacar partidos, tribunais e instituições seria legítimo, mesmo que se valendo de mentiras e agressões criminosas. É um embuste.

O fato é que a operação autorizada por Alexandre de Moraes foi um tsunami. Aprendeu documentos, computadores e celulares de 17 pessoas suspeitas de integrar uma associação criminosa coordenada pelo “gabinete do ódio” instalado no Palácio do Planalto.

Foram afetados empresários manjados (Luciano Hang, da Havan, e Edgard Corona, da Smart Fit), blogueiros conhecidos e políticos (como o onipresente Roberto Jefferson), além de oito deputados bolsonaristas, dentre os quais Carla Zambelli, Bia Kicis e Luiz de Orleans e Bragança, integrantes ativos da “nobreza” bolsonarista. Todos dedicados patrocinadores de “vídeos e materiais com ofensas e notícias falsas com o objetivo de desestabilizar as instituições democráticas”, escreveu Alexandre de Moraes. Trata-se de uma gangue.

O cerco não foi completo. Ficaram de fora Carlos Bolsonaro e Abraham Weintraub, este último já na mira do STF pelas declarações feitas na famosa reunião de 22 de abril. O Planalto planeja pedir um habeas corpus preventivo para tentar blindar o ministro da Educação, o que é reconhecimento cabal da fragilidade de sua situação.

Mesmo assim, o impacto e a repercussão foram enormes. Com a PF em ação, aumentou a temperatura das relações entre o Executivo e o Judiciário, em particular entre o governo e o STF.

No dia seguinte (28/05), o presidente da República bravateou que “ordens absurdas não se cumprem” e que se encarregaria de “botar um limite nessas questões”. Para ele, as “armas da democracia” estão em sua mão. Na sexta-feira, 29/05, enquanto o IBGE divulgava que o PIB nacional encolheu 1,5% no primeiro trimestre do ano, foi a vez do “posto Ipiranga” vir a público para chamar de “cretino” quem ataca o governo ao invés de ajudar. Deu-se ao desplante de pedir “cooperação, colaboração, compreensão, solidariedade”, enfatizando, como se precisasse se desculpar, que as disputas alimentadas pelo governo com outros Poderes (Judiciário) são “naturais”, defendendo o estabelecimento de uma trégua para que o barco não naufrague.

No mesmo dia, o ministro Edson Fachin decidiu remeter ao pleno do STF o pedido do Procurador Augusto Aras para que se suspenda o inquérito das fake news.

Dias tumultuosos, perigosos, que pedem inteligência política, combatividade, resistência e lucidez.

Em tempo: o inquérito e as diligências estão com Alexandre de Moraes, relator do inquérito. Mas contam com amplo apoio no STF.

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