O problema é achar o ponto certo. Quando se poderá reativar tudo e liberar as ruas para as pessoas? Quando fazer isso levando em conta as curvas da epidemia?
Em São Paulo, depois de um início firme, o governo e a prefeitura decidiram relaxar. Cederam à pressão de empresários e prefeitos, os primeiros preocupados com seus negócios e os segundo com medo de entrar em atrito com os cidadãos em um ano eleitoral. No geral, houve receio de que a população fugisse completamente do controle e decidisse, por conta própria, romper o isolamento — um isolamento que, a rigor, nunca chegou a ser propriamente assimilado, por inúmeras razões.
Aberta a economia, a multidão foi para as ruas. Filas em shoppings e lojas de ruas, os bolsões de comércio popular ficaram lotados, aquela muvuca de bancas, barracas e ambulantes, com gente chegando a experimentar roupas nas calçadas. Parte dos transeuntes era de trabalhadores, que precisavam bater o ponto e fazer suas vendas para ganhar as devidas comissões. Houve, também, sacoleiros aos montes, que foram às lojas para abastecer seus estoques de revenda.
Esses são os que ralam e precisam sair de casa para ganhar o pão de cada dia.
Mas houve também os consumidores puros, vorazes, que já não aguentavam viver a vida recolhidos e sem um circuito de compras. Gente que queria dar uma voltinha, espairecer, olhar vitrines, comprar um presente. Correr algum risco, mas não reprimir as pulsões do consumo.
Nada mais característico desse mundo louco que está aí.
Há poucas razões que justifiquem uma ida às compras sem necessidade material. As pessoas, porém, foram modeladas pelo mantra do “consumir é viver”. Como recordou o sábio jornalista Paulo Timm, é nas ruas que mora o “Acontecimento”, que, “como o pecado, tem uma atração fatal”. E acrescentou: “não somos tão sapiens como aprendemos. Somos máquinas desejantes numa sociedade endemicamente insatisfeita (Agnes Heller)”.
Durante a pandemia, houve abertos incentivos para que agíssemos como “seres desejantes”. Não só pelos negacionistas, banalizadores do vírus, mas também pela ideia de que não haveria outra saída que não passasse pela reativação da economia e pela volta do consumo presencial, com a devida manutenção do delivery. Muitos se convenceram de que “a crise econômica também mata”.
Como observou com precisão meu amigo e sociólogo Geraldo Di Giovanni, as pessoas foram contagiadas “pela exagerada estimativa, amplamente disseminada e terrorista com certeza, de que haveria um crash econômico definitivo se não se fizesse a abertura. Não faltam forças que apostam nesse jogo: desde o presidente, passando pelas associações comerciais, igrejas e todos os empreendimentos que se veem privados de ganhos imediatos. Cria-se assim um temor em relação à segurança econômica futura das pessoas e famílias, fazendo com que uma pequena e inocente ida às compras ganhe o significado e a força de um talismã, um breve, um escapulário, dessas coisas que se guarda escondido na carteira, que ninguém sabe, mas que as protege. Quando as coisas não são claras pela sua própria natureza e/ou por efeitos sistemáticos de mentiras e omissão, há um relaxamento das defesas psicológicas ou psicossociais e, com isso, passa a valer tudo”.
Os consumidores terminaram por aceitar um argumento que, no limite, pode voltar-se contra eles.
A flexibilização não salvará a economia. Só irá empurrá-la ainda mais para baixo, especialmente se vierem outras ondas sucessivas do vírus. Será um cenário de horror. Mortos empilhados nas portas das lojas, com as últimas aquisições entre os dedos.
Se quisermos salvar a humanidade e nos salvarmos a todos, o único jeito é barrar o sistema de produção tal qual existe. Praticar “gestos-barreiras” que travem a reprodução de um modo de produção que não queremos que seja retomado, como afirma Bruno Latour. Recuperar o futuro. Reconectar a economia à vida, tornar o sistema amigável, não predatório, não opressivo. É nos livrando do consumismo doentio que nos corrói por dentro e por fora. Ou achamos que os patógenos não se alimentam disso? Enquanto mantivermos as turbinas do mercado a mil por hora, enquanto nos deixarmos levar por nossas pulsões de consumo, não haverá salvação.
Há outras formas de produzir, outros produtos para serem postos em circulação. Outro jeito de ser feliz. Consumidores: consumam de outro modo, controlem-se. Menos é mais. Aproveitem o que a realidade está mostrando. Salvem-se a si próprios.