Diário do Confinamento 19:
A nau dos insensatos

Oskar Laske, Das Narrenschiff, 1949, ost
Oskar Laske, Das Narrenschiff, 1949, ost
O governo atual é tóxico. O presidente pode falar o que for, mas sua hostilidade à democracia é tão flagrante que não consegue ser simplesmente varrida para baixo do tapete.

Deve-se ao poeta Sebastian Brant (1457-1521) a imagem  do navio que flutua ao embalo de passageiros e tripulantes tomados pela insanidade. A nau dos insensatos (1494) foi escrito em tom abertamente satírico e moralizante com o objetivo de denunciar a sociedade de seu tempo e sobretudo suas elites, repletas de vícios e fraquezas. A embarcação viajava com 112 loucos, a cada um dos quais o poeta dedicou um capítulo. Registrou assim a avidez por dinheiro, o desleixo, a falta de escrúpulos, a perda da fé e o desinteresse pelo cultivo do intelecto. Os insensatos contrastavam a prudência e a sabedoria. Eram arrogantes, grosseiros, levianos, indolentes, mentirosos e violentos.

A alegoria de Brant era usual na cultura ocidental, um recurso para fazer a crítica das instituições e dos comportamentos. Na República de Platão, no capítulo em que se discute o desgoverno, a imagem aparece sob a forma do navio pilotado por um comandante ignorante, míope e surdo, que se impõe à tripulação e contribui decisivamente para que a insensatez prevaleça.

Pintores como Hieronymus Bosch (1450-1516) valeram-se da metáfora em algumas de suas obras. E ela correu o mundo, tornando uma imagem recorrente. Virou canção de rock (The Doors), deu título a um romance de Katherine Anne Porter (1962) e esse, por sua vez, serviu de base para o filme The ship of fools, dirigido por Stanley Kramer em 1965: loucos, fracassados, viciados, imorais, vaidosos, reunidos em um navio que viajava do México para a Alemanha antes de Hitler, sem que os passageiros se preocupassem em saber para onde iam. O nazismo emergia ali.

A “nau dos insensatos” expressa bem a atual situação brasileira.

Quarta-feira, 17 de junho

Foi um dia movimentado. Repleto de declarações hipócritas, dissimuladas, agressivas. O Palácio do Planalto converteu-se num bólido que dispara incessantes petardos sobre a opinião pública e a sociedade, incluída aí, evidentemente, a economia. A pandemia continuou a se alastrar, com uma sucessão aterrorizante de mortes e contaminações.

“Está chegando a hora de colocar tudo no devido lugar”, disse o presidente pela manhã, para enfatizar que “eles estão abusando”, uma acusação sem eira nem beira que só ficou clara quando houve o esclarecimento de que o governo achava improcedente a investigação pedida pela PGR de alguns deputados e de um senador bolsonarista. O presidente disse que tal ato não se encaixaria em nenhuma democracia do mundo, “nem na mais frágil”.

À tarde, foi dada posse ao ministro das Comunicações. Na solenidade, o presidente foi no embalo do discurso conciliador do novo ministro e surpreendeu, declarando que todos devem aceitar e respeitar “cada artigo da nossa Constituição”, que celebra a democracia.

Faltou dizer: a começar dele próprio.

Durante o dia, a conduta presidencial se mostrou desconectada da realidade, alheia a ela. Ou por cálculo, para tumultuar e emitir sinais cruzados, ou por pura alienação, devidamente misturada com fanatismo ideológico e desejo de afirmação. A vida, para ele, transcorre em outro diapasão, no qual ele seria a vítima preferencial de todos os poderes.

É uma anomalia, que não se enquadra no modo como se pensa a conduta política “normal”. Seu comportamento se assemelha ao de Trump e de outros líderes autoritários: mentir, iludir, desmentir o que foi feito ou falado, ameaçar. Redes e algoritmos estão aí para servi-lo. A seu lado, para complicar, um punhado expressivo de oficiais militares, que lhe fornecem sombra e proteção.

O núcleo teme que certas investigações em curso (fake news, Queiroz, assassinato de Marielle, ataques ao STF) progridam e desabem sobre o governo e a família do presidente, que não demonstra ter capacidade de alterar a conduta.

Não há como dizer, sem diagnóstico, que o presidente está surtado ou sofre de algum desvio de personalidade. Mas sua conduta tem muito de paranoica e psicótica.

Como bem lembrou, dias atrás, o professor Edgard de Assis Carvalho, antropólogo e estudioso da complexidade, há em Freud um conceito que se encaixa perfeitamente aqui. Em “Neurose e psicose”, texto de 1924, o pai da psicanálise se refere à amência, “um confusão alucinatória aguda, talvez a mais extrema e impressionante forma de psicose, em que o mundo exterior não é percebido é percebido ou sua percepção não tem qualquer efeito”.

Não há como dar certo

Independentemente disso, o fato é que um governo comandado por uma pessoa desconectada da vida real (a pandemia), mas agressiva ao extremo, não tem como dar certo. Ainda mais quando se vê que é integrado por pessoas assemelhadas, Weintraub, Ernesto Araújo, Damares, Wajngarten, Mendonça, todas irmanadas no mesmo desejo de acossar a sociedade e defender ideias que só provocam atrito e desagregação. Uma ilha cercada por militares e fanáticos.

Um governo assim é tóxico. Ele pode falar o que for, mas sua hostilidade à democracia, a convergências e composições, é tão flagrante que não consegue ser simplesmente varrida para baixo do tapete.

Podemos fazer a análise de que formos capazes, mais sofisticadas ou menos, mas a verdade é que se chegou a um ponto de exaustão. A cada dia fica mais difícil a pacificação do País e a gestão competente da epidemia e da economia. É uma saturação que sugere rupturas. A partir daqui, se nada for feito, o País terá seu futuro mais imediato gravemente comprometido.

A quinta-feira, 18, amanheceu com a prisão de Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro. O procuradíssimo Queiroz estava escondido em uma casa de propriedade de Frederick Wassef, advogado da família. A prisão fez a crise se aprofundar no Palácio do Planalto, pois ligou a Presidência da República a negócios privados de um filho do presidente em investigação por organização criminosa, desvio de recursos públicos e lavagem de dinheiro.

À tarde, Abraham Weintraub anunciou em vídeo sua saída do MEC, ao lado de um desorientado presidente.

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