Basta dar uma volta de automóvel, ônibus ou metrô pela cidade de São Paulo para que logo se perceba que as coisas estão voltando ao normal. Ainda não há grandes congestionamentos, mas as pessoas circulam com intensidade. Não só os trabalhadores, que nunca deixaram de fazer isso. Mas os consumidores, aqueles que não conseguiam mais ficar trancafiados. Cálculos registram que a circulação de pessoas aumentou expressivamente no correr de julho e ao longo de agosto. O cansaço e o tédio empurram muita gente para fora de casa.
O abandono da quarentena se deu sem que a Covid-19 tenha arrefecido, embora seja verdade que os casos se estabilizaram na maioria dos estados. Ainda continua a ocorrer, porém, uma média nacional de mais de mil mortes por dia. Estamos chegando a 120 mil óbitos, 4 milhões de infectados.
Não houve propriamente quarentena. A briga foi permanente. Muita gente atendeu aos apelos, mas muito gente não pôde ou não quis ficar em casa. O negacionismo marcou presença, incentivado pelo presidente da República e seus seguidores. O mesmo Bolsonaro que negou tudo o que foi possível, hoje enche a boca para dizer que está conseguindo “vencer a Covid-19”, mentira pesada com que infesta as redes sociais juntamente com o embuste da cloroquina.
O presidente ensaiou uma fase de “paz e amor”, mas logo foi devorado por sua natureza beligerante, grosseira e autoritária. Quero “encher tua boca de porrada”, disparou contra o repórter que fez a pergunta incômoda: “por que Michelle recebeu R$ 89 mil de Fabrício Queiroz?” . Jamais mostrou constrangimento, sensibilidade ou empatia perante os milhares de mortos. E voltou a atacar os jornalistas, ao dizer que ele, como “atleta” que enfrenta o vírus como macho, estaria mais protegido do que um “bundão de vocês”. Rasgou todas as medidas de distanciamento e prevenção, dando uma demonstração de rara estupidez pública.
É provável que mesmo com taxas baixas de adesão, o confinamento tenha ajudado a reduzir o impacto da doença, especialmente nas grandes cidades. Quem tinha garantia de renda e consciência cívica não saiu de casa. O delivery explodiu, os apps de vídeo idem. A vida digital se instalou. Muita gente descobriu que dá para comprar à distância, trabalhar de casa, circular menos. Mas ninguém se conformou em ficar sem ver filhos, netos e amigos. Foram meses duros e angustiantes para todos. Uma desgraça, que será chorada por muito tempo.
O País não tem um eixo para combater o vírus e não sabe como retomar a “normalidade”, voltar a crescer, a reativar a economia, reduzir o desemprego e a desigualdade brutal. Os sistemas nacionais — educação, saúde, infraestrutura, cultura, ciência e tecnologia — estão sem coordenação e tenderão a ficar, também, sem recursos, pessoas e verbas.
A expectativa de que a vacina resolverá tudo é uma esperança ingênua. Por mais que se tenha o antídoto no início do próximo ano, não há como saber como ele será produzido, com que velocidade, e como será feita a distribuição e a aplicação em massa.
A quarentena terminou, mas não podemos dizer “bem-vindos de volta à vida normal”. Muitos ajustes terão de ser feitos nos hábitos cotidianos, nas ideias, nos comportamentos. Teremos de reaprender a viver, ainda que isso venha a ser feito aos poucos, no correr de um processo longo. Quanto antes percebermos isso, melhor.
Saberemos decifrar o enigma freudiano e articular segurança e liberdade com altas doses de inteligência e racionalidade democrática? O conflito será entre um viver mais recluso e a exposição ao risco. A luta pela vida acontecerá em diálogo com a memória coletiva, na qual latejam as imagens de uma vida aberta, desenfreada, impregnada de consumo intensivo, mobilidade e movimentação. Teremos de fazer uma transição, difícil como qualquer outra.
Conseguiremos fazer isso?