Diário do Confinamento 9:
Hora de decisões

textura 6
A democracia tem mecanismos para conter governantes que a ameaçam. Quem irá ativá-los? Quando?

“Cala a boca, não perguntei nada!”. A grosseria e a agressividade causam horror, desgosto, não fazem parte da vida civilizada. Impossível passar em branco. O presidente cospe na cara da cidadania, da governança, da própria governabilidade. Debocha do próprio governo, segue desembestado. Seu amanhã é a conservação do poder, o esforço insano para não perder o sopro que a Fortuna lhe concedeu em 2018.

A bola da vez é Sérgio Moro. Suas denúncias puseram novas cartas na mesa. Não foram bombásticas, mas Jair mordeu a isca, com o rabo preso. Na sua vez de jogar, o presidente agiu com a brutalidade que lhe é típica. Não calculou os próximos lances, xingou, subiu o tom, espumou, fez a pior manobra de todas: disse que tudo não passa de “mentira deslavada”. Não convenceu ninguém. Antes, Moro tinha posto o dedo na ferida, revelando a frase suspeita: “Você tem 27 superintendência, Moro, eu só quero uma, a do Rio”.

Justo a do Rio, aquela mais próxima dos interesses da família, dos milicianos, das “rachadinhas”, do Queirós? Ora, ora…

O destempero presidencial subiu ao palco. Era o que menos se precisava nesse momento agônico. Um presidente em surto é um pesadelo, que amplifica o pesadelo epidêmico. Mata. Não aceita qualquer ponderação, não respeita nem sequer a ordem unida de que se vangloria. Continuarão a sustentá-lo? Quem, por quais motivos e razões?

Não basta denunciá-lo. Também não basta argumentar que é preciso “garantir a ordem constitucional”. Alguém precisa colocar o guizo no gato.

Há um núcleo pensante no governo? Deve haver algum grupo que dê diretrizes. Por mais insignificante que seja a estatura do patrono, o olavismo tem seguidores. Heleno, Ernesto, Weintraub, Wajngarten, Damares, 01, 02 e 03, o gabinete do ódio? Que turma! E há ainda os que trabalham em silêncio, coonestando e deixando como está para ver como é que fica. São igualmente responsáveis.

Tão impressionante quanto um governante aloprado são aqueles que o seguem e aplaudem. Por fanatismo? Por burrice? Por alienação? Por tudo isso junto? Muita pesquisa terá de ser feita para verificar as raízes sociais dessa tormenta. Onde erraram os democratas, mais radicais ou menos? Onde erraram os liberais? Como pudemos chegar a esse ponto?

Ficou-se a falar que a democracia estava consolidada, que as instituições haviam adquirido força suficiente, e de repente se vê o risco de retrocesso crescer. A institucionalidade aguentará? Os responsáveis pelos Poderes terão a sabedoria necessária para agir com ponderação, mas sem tergiversações e temores? Um governante que governa contra tudo o que é razoável mina a democracia, destrói o que há de cultura cívica no País, empurra a população para a desgraça do autoritarismo, impede que avance até mesmo um plano mequetrefe de crescimento econômico e ajuste fiscal.

Erros se acumularam. A desunião democrática, a voracidade e o desejo de poder daqueles que nos governaram nas últimas décadas, a competição entre atores que deveriam caminhar juntos, a falta de um programa comum de reformas, o desleixo com que se assistiu ao País postergar medidas estratégicas (a infraestrutura, lato sensu), estão a pagar um preço absurdamente alto.

A democracia tem mecanismos para conter governantes que a ameaçam. Quem irá ativá-los? Quando?

Não poderá ser pela via de um “golpe”, porque esse já está sendo tentado pelo próprio presidente. O impeachment é o expediente constitucional, mas requer elementos que ainda não amadureceram. A pressão social, por sua vez, não pode ser efetiva em plena quarentena. Mas há o Congresso, que pode agir com maior ímpeto, ir além de aparar arestas.

A racionalidade democrática passa pelo equilíbrio entre serenidade e indignação, temperança e coragem cívica, valorização das instituições e combate político. É a porta de saída que temos. Com as chaves na mão, o STF larga na frente. A ver onde nos levará a atual fase da judicialização e do ativismo da Suprema Corte.

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