Inusitados. Assustadores. Preocupantes.
Os adjetivos podem variar, mas nenhum diagnóstico deixará de constatar que os primeiros cem dias de Jair Bolsonaro à frente da Presidência da República produziram uma reversão nas expectativas, até mesmo dos que nele votaram em 2018. Poucos imaginavam que o tempo transcorreria sem que se conseguisse vislumbrar um governo à altura dos desafios brasileiros. Faltaram ideias, programa de ação, liderança, coordenação. Sobraram provocações, rusgas bobas, desentendimentos, agitação.
Foram dias de fúria passional, desânimo e caneladas.
O País atravessou o período torcendo para que o governo começasse a governar. Seria difícil, como para qualquer outro governante, tendo em vista as polarizações ideológicas cristalizadas, a desorganização da vida política, o legado dos anos recentes. Improvável que um movimento nascido por espasmo, que pulou para o palco da política nacional como se tivesse caído do céu – sem bases organizadas, sem um DNA testado, contando tão somente com a confusão ideológica, os preconceitos e a ansiedade de muitos cidadãos – pudesse em pouco tempo ganhar prumo e empolgar. Mas não se esperava que ficasse tanto a dever.
Diversos setores da sociedade e da opinião pública – incluídos os principais órgãos de imprensa – tentaram convencer o governo de que a campanha eleitoral terminara em outubro passado e que agora era hora de colher os frutos da vitória conquistada. Até as oposições, desarvoradas e sem poder de crítica, contribuíram.
De nada adiantou. O governo continuou a jogar contra si próprio, sem se dar conta disso, achando que está a demarcar um campo de luta a partir do qual nascerá uma força regeneradora que trará de volta a brasilidade perdida, como se um passado mitificado fosse a meta a ser atingida. Nele se esconderiam inimigos insidiosos, que precisariam ser levados à luz do dia e destruídos. A fúria ideológica subiu à cabeça. Tudo ao largo dos interesses da população, para quem importam pouquíssimo a disseminação de valores retrógrados, as agressões contra conspiradores inexistentes, as causas que levantam poeira e estão na contramão da História.
O resultado não poderia ser outro. Economia estagnada, turbulência financeira, insegurança nos mercados, desemprego em alta, e a população embasbacada, perdendo confiança e esperança. Logo vieram as pesquisas para indicar que a popularidade do presidente estava em queda. Na seara governamental, poucos ministros entregaram alguma coisa, a grande maioria recolheu-se aos gabinetes ou entrou na fila para ver quem conseguia falar a bobagem maior. Os campeões foram, de longe, Ernesto Araújo, Vélez Rodriguez e Damares Alves, que chocaram o mundo ou com o silêncio constrangedor (como na Educação) ou com declarações estapafúrdias, como as que procuraram converter o nazismo alemão em variante da esquerda ou transformar Donald Trump em libertador do Ocidente cristão. Em Israel, Jair Bolsonaro fez coro às declarações do ministro das Relações Exteriores, e afirmou que “não há dúvida” de que o nazismo foi um movimento de esquerda. A ignorância e a grosseria foram sendo despejadas em cascata.
O governo não conseguiu capitalizar o que poderiam ter sido seus trunfos. Em Davos, o presidente tartamudeou. As viagens aos Estados Unidos e ao Chile foram ofuscadas pela subserviência vergonhosa a Trump e pelos inadequados elogios ao ditador Pinochet. Foi a Israel e entrou em atrito com o mundo árabe. Algo que se completou com a tentativa de comemorar o golpe militar de 1964 e qualificá-lo como salvação nacional e libertação do País do comunismo, não como o início de uma longa e sangrenta ditadura.
Um tema pacificado na política e já devidamente processado na historiografia foi reaberto sem que se conseguisse compreender as razões. A iniciativa só serviu para abespinhar um pouco mais a opinião pública e reforçar a imagem de um governo revanchista, sem disposição para unir a sociedade e dialogar com todos.
A reforma da Previdência – menina dos olhos de críticos e apoiadores – ficou ao relento, subsumida por tensões pouco claras entre Bolsonaro e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Arestas foram aparadas, mas Bolsonaro não se mexeu. A consequência foi a tentativa de Maia e Paulo Guedes, ministro da Economia, de criar uma espécie de “governo paralelo” com que viabilizar a reforma na arena parlamentar. Um governo de Bolsonaro sem Bolsonaro ou com o presidente deslocado para a periferia das redes sociais.
Olhando com uma grande angular, não é difícil localizar algumas das razões de tanto desencontro e tanta inoperância. O Brasil não é para amadores. O governo Bolsonaro não tem um plano de ação, nem uma filosofia de gestão. Não conhece o País e não sabe o que fazer para governá-lo. Suas prioridades são ideológicas. Falta ao presidente vontade de presidir, de governar para todos, de ir além de seus fanáticos seguidores. Seus filhos sentem-se à vontade para postular, sem qualquer prurido, um protagonismo inadequado e contraproducente. A presença do escritor Olavo de Carvalho como guru presidencial dá ao quadro a dimensão de um pandemônio tragicômico, sem que se saiba como foi possível que atingisse essa posição alguém tão rudimentar, que nada tem a oferecer senão uma narrativa sustentada por pauladas e palavrões. Um influenciador ressentido, egocêntrico e estranho às tradições intelectuais brasileiras, também ele sem dispor de uma teoria séria sobre o País. É combustível certo para crises e desgastes.
O enigma permanece sem resolução, desafia operadores e analistas, situação e oposição, civis e militares. O País talvez não consiga suportar o prolongamento dessa situação, talvez se acomode a ela, quem sabe termine por folclorizá-la ou reduzi-la a memes. O problema é que quanto mais o tempo passar sem que se encontre uma saída que ajude a que pelo menos haja um eixo e alguma coordenação, pior será para todos.
A sociedade civil continua viva e atenta, a classe política não desapareceu. Há no Congresso Nacional articuladores experientes, que em algum momento poderão entrar em cena. Mesmo dentro do governo há forças que trabalham para alcançar uma reorganização. A opção mais simples seria o governo admitir que suas pernas são curtas demais para dar os passos de que o País necessita e modificar o roteiro seguido até aqui, com o presidente passando a se comportar com a grandeza que seu cargo exige, a buscar cooperação em vez de atrito, propostas em vez de provocações. Um gesto simples, mas improvável.
Publicado na revista Época, nº 1083, 08/04/2019, p. 34-35.
A clareza deste seu texto, articulando com tanta lucidez o caos que estamos vivendo hoje, é quase um soco no estômago…
Verdade, Eloisa. Estamos apanhando dia após dia. Mas como não há mal que dure para sempre, algo haverá de acontecer. Abraço, e obrigado pelo comentário.