Dias de fúria e desânimo

Francis Bacon, Three Studies for Figures at the Base of a Crucifixion, c. 1944
Francis Bacon, Three Studies for Figures at the Base of a Crucifixion, c. 1944
O Brasil não é para amadores. O governo Bolsonaro mostra que não tem um plano de ação. Não conhece o País e não sabe como governá-lo. Suas prioridades são ideológicas. Falta ao presidente vontade de governar para todos, de ir além de seus fanáticos seguidores.

Inusitados. Assustadores. Preocupantes.

Os adjetivos podem variar, mas nenhum diagnóstico deixará de constatar que os primeiros cem dias de Jair Bolsonaro à frente da Presidência da República produziram uma reversão nas expectativas, até mesmo dos que nele votaram em 2018. Poucos imaginavam que o tempo transcorreria sem que se conseguisse vislumbrar um governo à altura dos desafios brasileiros. Faltaram ideias, programa de ação, liderança, coordenação. Sobraram provocações, rusgas bobas, desentendimentos, agitação.

Foram dias de fúria passional, desânimo e caneladas.

O País atravessou o período torcendo para que o governo começasse a governar. Seria difícil, como para qualquer outro governante, tendo em vista as polarizações ideológicas cristalizadas, a desorganização da vida política, o legado dos anos recentes. Improvável que um movimento nascido por espasmo, que pulou para o palco da política nacional como se tivesse caído do céu – sem bases organizadas, sem um DNA testado, contando tão somente com a confusão ideológica, os preconceitos e a ansiedade de muitos cidadãos – pudesse em pouco tempo ganhar prumo e empolgar. Mas não se esperava que ficasse tanto a dever.

Diversos setores da sociedade e da opinião pública – incluídos os principais órgãos de imprensa – tentaram convencer o governo de que a campanha eleitoral terminara em outubro passado e que agora era hora de colher os frutos da vitória conquistada. Até as oposições, desarvoradas e sem poder de crítica, contribuíram.

De nada adiantou. O governo continuou a jogar contra si próprio, sem se dar conta disso, achando que está a demarcar um campo de luta a partir do qual nascerá uma força regeneradora que trará de volta a brasilidade perdida, como se um passado mitificado fosse a meta a ser atingida. Nele se esconderiam inimigos insidiosos, que precisariam ser levados à luz do dia e destruídos. A fúria ideológica subiu à cabeça. Tudo ao largo dos interesses da população, para quem importam pouquíssimo a disseminação de valores retrógrados, as agressões contra conspiradores inexistentes, as causas que levantam poeira e estão na contramão da História.

O resultado não poderia ser outro. Economia estagnada, turbulência financeira, insegurança nos mercados, desemprego em alta, e a população embasbacada, perdendo confiança e esperança. Logo vieram as pesquisas para indicar que a popularidade do presidente estava em queda. Na seara governamental, poucos ministros entregaram alguma coisa, a grande maioria recolheu-se aos gabinetes ou entrou na fila para ver quem conseguia falar a bobagem maior. Os campeões foram, de longe, Ernesto Araújo, Vélez Rodriguez e Damares Alves, que chocaram o mundo ou com o silêncio constrangedor (como na Educação) ou com declarações estapafúrdias, como as que procuraram converter o nazismo alemão em variante da esquerda ou transformar Donald Trump em libertador do Ocidente cristão. Em Israel, Jair Bolsonaro fez coro às declarações do ministro das Relações Exteriores, e afirmou que “não há dúvida” de que o nazismo foi um movimento de esquerda. A ignorância e a grosseria foram sendo despejadas em cascata.

O governo não conseguiu capitalizar o que poderiam ter sido seus trunfos. Em Davos, o presidente tartamudeou. As viagens aos Estados Unidos e ao Chile foram ofuscadas pela subserviência vergonhosa a Trump e pelos inadequados elogios ao ditador Pinochet. Foi a Israel e entrou em atrito com o mundo árabe. Algo que se completou com a tentativa de comemorar o golpe militar de 1964 e qualificá-lo como salvação nacional e libertação do País do comunismo, não como o início de uma longa e sangrenta ditadura.

Um tema pacificado na política e já devidamente processado na historiografia foi reaberto sem que se conseguisse compreender as razões. A iniciativa só serviu para abespinhar um pouco mais a opinião pública e reforçar a imagem de um governo revanchista, sem disposição para unir a sociedade e dialogar com todos.

A reforma da Previdência – menina dos olhos de críticos e apoiadores – ficou ao relento, subsumida por tensões pouco claras entre Bolsonaro e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Arestas foram aparadas, mas Bolsonaro não se mexeu. A consequência foi a tentativa de Maia e Paulo Guedes, ministro da Economia, de criar uma espécie de “governo paralelo” com que viabilizar a reforma na arena parlamentar. Um governo de Bolsonaro sem Bolsonaro ou com o presidente deslocado para a periferia das redes sociais.

Olhando com uma grande angular, não é difícil localizar algumas das razões de tanto desencontro e tanta inoperância. O Brasil não é para amadores. O governo Bolsonaro não tem um plano de ação, nem uma filosofia de gestão. Não conhece o País e não sabe o que fazer para governá-lo. Suas prioridades são ideológicas. Falta ao presidente vontade de presidir, de governar para todos, de ir além de seus fanáticos seguidores. Seus filhos sentem-se à vontade para postular, sem qualquer prurido, um protagonismo inadequado e contraproducente. A presença do escritor Olavo de Carvalho como guru presidencial dá ao quadro a dimensão de um pandemônio tragicômico, sem que se saiba como foi possível que atingisse essa posição alguém tão rudimentar, que nada tem a oferecer senão uma narrativa sustentada por pauladas e palavrões. Um influenciador ressentido, egocêntrico e estranho às tradições intelectuais brasileiras, também ele sem dispor de uma teoria séria sobre o País. É combustível certo para crises e desgastes.

O enigma permanece sem resolução, desafia operadores e analistas, situação e oposição, civis e militares. O País talvez não consiga suportar o prolongamento dessa situação, talvez se acomode a ela, quem sabe termine por folclorizá-la ou reduzi-la a memes. O problema é que quanto mais o tempo passar sem que se encontre uma saída que ajude a que pelo menos haja um eixo e alguma coordenação, pior será para todos.

A sociedade civil continua viva e atenta, a classe política não desapareceu. Há no Congresso Nacional articuladores experientes, que em algum momento poderão entrar em cena. Mesmo dentro do governo há forças que trabalham para alcançar uma reorganização. A opção mais simples seria o governo admitir que suas pernas são curtas demais para dar os passos de que o País necessita e modificar o roteiro seguido até aqui, com o presidente passando a se comportar com a grandeza que seu cargo exige, a buscar cooperação em vez de atrito, propostas em vez de provocações. Um gesto simples, mas improvável.


Publicado na revista Época, nº 1083, 08/04/2019, p. 34-35.

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Eloisa Hofling
5 anos atrás

A clareza deste seu texto, articulando com tanta lucidez o caos que estamos vivendo hoje, é quase um soco no estômago…

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