As eleições municipais de 2024 puseram em xeque uma polarização que tem sido uma das marcas registradas dos embates políticos nacionais dos últimos anos, mas que já não parece mais corresponder à realidade.
A extrema direita não se bateu contra os democratas e as esquerdas. Lula e Bolsonaro não se confrontaram. Dobraram-se a uma clara inclinação eleitoral ao centro, que se derramou pelo país todo. Houve mais moderação do que radicalização. Mais cálculo. O eleitorado parece ter se “acomodado”, fez escolhas conservadoras e cautelosas, referendando a maior parte dos prefeitos que se lançaram à reeleição. O eleitor se manifestou com clareza, livremente. É pueril tratá-lo como se fosse um alienado que ignora os perigos do reacionarismo ou uma vítima indefesa das redes.
Em São Paulo, esquerda e direita ficaram nos bastidores, esmagadas pela baixaria que dominou o primeiro turno e se estendeu ao segundo.
A derrota de Boulos
Guilherme Boulos se apresentou como a encarnação da esquerda, mas fez uma campanha sem qualquer mensagem que fizesse jus a um ideário socialista. Nem sequer seu partido, o Psol, apareceu. Buscou uma imagem moderada, para reduzir suas altas taxas de rejeição. No segundo turno, ensaiou maior veemência e combatividade, sem no entanto romper com a contraposição rebarbativa ao prefeito. Suas propostas foram retóricas, imprecisas e vazias. Além disso, o candidato escorregou no oportunismo ao tentar atrair o eleitorado de Marçal e Tabata e a se apresentar como integrante de uma “frente ampla” que nunca foi proposta nem chegou a se constituir.
Sua derrota foi acachapante e, por isso, é compreensível que seus apoiadores e os que nele votaram procurem encontrar uma explicação para o fato.
No final da votação, Ricardo Nunes vitorioso, Boulos reconheceu a derrota, mas disse que com sua campanha “resgatou a dignidade da esquerda”. Como assim, resgatou? A esquerda petista sempre teve dignidade em São Paulo. Ganhou e perdeu eleições, como acontece em sistemas democráticos. Governou várias vezes a cidade. Por que teria perdido a dignidade, como se fosse necessário que uma nova candidatura de esquerda tivesse que aparecer para recuperar o que fora perdido?
Antes de tudo, temos de perguntar se Boulos fez uma campanha de esquerda. Em algum momento foram desfraldadas bandeiras vermelhas ou apresentadas medidas de reforma social profundas, que alterassem a correlação de forças e as estruturas da sociedade paulistana? Não, em nenhum momento. Boulos fez uma campanha contra o prefeito que disputava a reeleição. Isso, e nada mais. Não é honesto, agora que o leite derramou, dizer algo diferente. A esquerda não apareceu. Boulos não foi confrontado por uma extrema direita “fascista”
Nas circunstâncias dadas, a esquerda não poderia ter aparecido. Para que isso acontecesse, teria de haver maior realismo, menos ideologia e mais articulação unitária, de modo a agregar os diversos pedaços dos democratas progressistas (liberais, socialdemocratas, trabalhistas, socialistas, comunistas), tanto para criar uma “força política” quanto para neutralizar o que havia de rejeição à esquerda na cidade. Se algo tivesse ocorrido nessa direção, não teria sido Boulos o candidato.
A própria chapa foi errada. Marta Suplicy era secretária de Ricardo Nunes. Saiu do cargo para retornar ao PT e compor a chapa com Boulos. Por que saiu, por que voltou? Não houve explicações para a decisão, que por certo desanimou parte da militância mais aguerrida do PT. Boulos recebeu caminhões de dinheiro do PT, mas o PT não se engajou de fato na campanha, a começar de Lula. O fato mesmo de o partido não ter encabeçado a chapa já era um indicativo de que os dirigentes petistas consideravam que o cenário paulistano não era favorável. Falaram que havia um compromisso de que Boulos seria candidato. Conversa protocolar, distante dos processos decisórios em política.
O resultado foi que, passados quatro anos da última eleição (2020), Boulos não saiu do lugar. O retrato da apuração é melancólico: o candidato do Psol somente conseguiu vencer em três zonas eleitorais, recuando assustadoramente no segundo turno. Em algumas regiões, não conseguiu nem sequer manter a votação obtida no primeiro turno. Nunes venceu na cidade inteira, nas periferias, nos bairros nobres, nos bairros de classe média, nos rincões de norte a sul.
Não procede, portanto, que se diga que Boulos perdeu porque havia uma “atmosfera fascista” em São Paulo. É tapar o sol com uma peneira ideológica totalmente falsa. Nada mais fácil do que dizer que a esquerda perde para os fascistas, etiquetando assim todos os seus adversários. Ou será que as pessoas acham que Ricardo Nunes pilotava uma coligação fascista, a mesma, aliás, que dá sustentação ao governo Lula? Será que interpretam o apoio envergonhado de Bolsonaro como prova de que fascismo se instalara em São Paulo e comandava a campanha de Nunes? Ou que Pablo Marçal era o comandante das brigadas fascistas?
Poucos eleitores e ativistas de Boulos avaliaram o oportunismo do candidato ao pedir o apoio de Pablo Marçal. Ou sua arrogância, que nos debates parecia querer peitar fisicamente o adversário. Ou sua postura pouco empática, como se o mero fato de ter vínculos à esquerda bastasse para lhe dar legitimidade e atrair os eleitores. Agora, pode ser que culpem os eleitores, “alienados” que não conseguiram entender o significado da candidatura de Boulos.
Boulos não reciclou o discurso de esquerda. Nem poderia fazê-lo, dada sua trajetória. Remeteu-se aos trabalhadores, às periferias, aos excluídos, sem elaborar um discurso harmonioso e convincente. Permaneceu agarrado a um estilo superlativo, a uma narrativa de “indignação” e a uma coreografia “radicalizada”, pouco falando de gestão urbana e de temas que poderiam sensibilizar o eleitorado (empreendedorismo, aplicativos, trabalho domiciliar, cidade inteligente, entre tantos outros). O quanto isso o afetou as urnas disseram.
O pragmatismo se soma ao centro
Por sua vez, Ricardo Nunes abraçou o pragmatismo do começo ao fim, fiel ao modelo de candidato-prefeito. Insistiu nas virtuais realizações de sua gestão, sem se engajar em polêmicas e sem responder às críticas. Escudou-se no governador Tarciso de Freitas e seguiu em frente indiferente a suspeitas e acusações. Quase nada apresentou de projetos e muito menos de uma ideia renovada de cidade. Explorou o desejo de continuidade que aflorou na população.
Nunes nunca foi “bolsonarista”. Se for preciso etiquetá-lo, é um centrista que joga o jogo puxando a brasa para sua sardinha. Político tradicional, enraizado em parte das periferias paulistanas, emedebista desde sempre, lançou-se à reeleição com uma vasta coligação partidária, na qual Bolsonaro foi personagem opaco. Amealhou, por certo, votos bolsonaristas, receosos de entregar o espólio ao provocador Pablo Marçal e de possibilitar a volta do PT à Prefeitura. Se há antibolsonarismo na capital, também há antipetismo.
A coligação de Nunes copiou a coligação que sustenta o governo federal. Ficaram com ele o MDB, o PSD, o União Brasil, os Republicanos, o Solidariedade, partidos que integram o ministério de Lula e lhe impõem uma pauta no Congresso. O estigma de que estaria ligado ao bolsonarismo, imagem que seduziu muitos eleitores de Boulos, não foi procedente e teve pouco efeito.
O fato é que a cidade de São Paulo ficou fora do foco das campanhas de ambos os candidatos que chegaram ao segundo turno. Nem sequer se destacou a complexidade da cidade como núcleo urbano, algo que requer muito mais do que promessas de mudança, propostas genéricas ou lista de obras executadas. De concreto, o que se teve foi mais do mesmo.
Ao fim e ao cabo
Vistas em âmbito nacional, as eleições desenharam um País diferente do que se pensava. A extrema direita não mostrou tanta força e se dividiu; a esquerda não conseguiu se projetar. Ambas não captaram a cabeça do eleitorado, que carrega novas pautas e novos hábitos. O eleitor explicitou opiniões impostas pela vida hipermoderna, na qual tudo gira em alta velocidade e sem parâmetros claros, em que o trabalho, as classes e as organizações se fragmentam e perdem empuxo.
Isso pode significar que a população se tornou conservadora, mais hostil à política democrática e mais refratária a mudanças no plano dos valores? É bem provável, mas tal inclinação não surgiu agora, vem de longe. O brasileiro sempre foi conservador em termos de valores. Parte importante da população radicalizou esse conservadorismo. Com o avanço da hipermodernidade, com as redes e as batalhas identitárias, com a ausência de articuladores progressistas de bom nível, de partidos programáticos com capacidade educativa, o eleitor foi largado à própria sorte. Foi resgatado por quem lhe ofereceu mais continuidade administrativa e menores exigências de “ruptura”.
Quem ganhou com isso foi um centro ampliado, integrado por correntes fisiológicas, moderadas, democráticas e liberal-conservadoras, que lutam entre si sem que se saiba quem prevalecerá. Não foi o “Centrão”, como se apressaram em dizer diversos analistas, mas um agregado de partidos e de partidos assentados no centro do tabuleiro. Foram todos beneficiados pelos recursos derivados das emendas parlamentares. Eles, mas também os democratas progressistas. Pelas urnas de 2024, não dá para dizer que a extrema direita adquiriu maior musculatura, nem muito menos delinear um cenário para 2026.
Para os progressistas, ficou um lote de dilemas e desafios. Continuarão suas correntes de esquerda a falar a mesma língua de antes, baseada em luta de classes, mundos do trabalho hoje estilhaçados, em trabalhadores solidamente organizados? Continuarão a defender a presença de um Estado ativo e forte sem considerar o custo tributário e os problemas fiscais?
A esquerda não é somente o PT e o Psol. Também forma um universo ampliado, cheio de fraturas, desentendimentos e pretensões eleitorais. Seus partidos se federalizam em períodos eleitorais, mas não ganham articulação e programas unitários. Muitos progressistas agitam bandeiras identitárias sem maior ponderação e sem levar em conta o que move as pessoas. Tratam os pobres como vítimas desprovidas de opinião, ideias e vontades. Falam da população sem se preocupar em investigá-la e compreendê-la.
Os progressistas – e entre eles as correntes de esquerda – estão hoje carentes de uma teoria do mundo atual e de totalizações dialéticas. Em consequência, sua linguagem não penetra a massa da população e soa como coisa velha nos embates eleitorais. Vivem na dependência de líderes carismáticos e populistas, a maioria dos quais estão desatualizados e já cansados de guerra.
Continuarão a derrapar se permanecerem repetindo narrativas que não interagem com a realidade dura da hipermodernidade e não valorizam a democracia política, que é hoje o que mais importa.
Parte do texto foi publicada em O Estado de S. Paulo, 26/10/2024.