Aceitar ser ministro da Justiça de Jair Bolsonaro foi o maior erro de Sérgio Moro.
Em uma só passada, submeteu a Lava Jato ao governo de plantão e levantou uma poeira de suspeitas sobre a sua desejada imparcialidade como juiz da mais audaciosa operação de combate à corrupção. Se antes havia controvérsias sobre o estilo de investigação e julgamento dos acusados, com a ida ao ministério Moro fez um pacto com o diabo. Subordinou-se a um presidente pouco respeitoso, desinteressado de cumprir liturgias e exigências constitucionais, um governante verdadeiramente desenfreado.
Moro calculou mal, ao achar que teria ampliado seu raio de ação como herói anticorrupção e veria facilitadas suas pretensões de dar início a uma carreira política que poderia levá-lo à Presidência ou ao STF. Trocou uma trajetória segura, ou tendencialmente segura, pelo risco e a incerteza.
Os fatos contam. Oito meses depois de assumir o cargo, Moro só colheu derrotas e humilhações. Tornou-se uma espécie de pau-mandado de Bolsonaro, sem qualquer poder de influência e de reação às investidas agressivas do presidente. Nem sequer tem conseguido nomear auxiliares ou assegurar o controle regimental sobre os órgãos vinculados à sua pasta, como a Polícia Federal. Também não se mostra com força e interesse em se contrapor aos desatinos autoprotecionistas do clã Bolsonaro.
Moro foi desidratando, tornou-se figura opaca em um ministério de segunda linha. Justo ele, que foi atraído ao governo com a promessa de que seria a joia da Coroa.
Não há como dizer que Moro reconhecerá o fracasso, assumirá o erro e tomará alguma decisão que faça jus à fama anterior. Poderá resistir até a última gota de sangue e suor, terminando por aceitar passivamente sua destruição pública, o desgaste de sua imagem e a corrosão de sua popularidade.
Como Bolsonaro abandonou de vez a retórica contra a corrupção e é conivente com crimes no afã de proteger a família, é de se perguntar o que ainda faz Moro no ministério.
Pode ser o gosto pelo poder, com suas regalias e sua mise-en-scène. Pode ser um novo cálculo estratégico, sustentado pelo suposto de que no Planalto sobrará somente ele no front do combate à corrupção e à criminalidade, com o que poderia recuperar sua imagem junto à opinião pública e se jogar por inteiro na política. Pode ser, enfim, que ele tenha se convencido da força regeneradora do bolsonarismo.
Mas, e se Moro decidir sair, cansado das derrotas sucessivas, dia após dia? E se for demitido? Ele começou a disparar contra o governo, sobretudo diante dos cortes orçamentários que atingem seu ministério. No último dia 26 de agosto, ele escreveu ao ministro da Fazenda, Paulo Guedes, para adverti-lo de que a redução provocará “alarmante cenário de inviabilização de políticas públicas de segurança” e afetará operações da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal, da Força Nacional de Segurança Pública, além de prejudicar a emissão de passaportes, o combate ao tráfico de drogas, ao crime organizado, à corrupção e à lavagem de dinheiro.
A saída de Moro causará algum abalo no governo, tirando-lhe das mãos a bandeira da moralidade. O ex-juiz poderá refazer parte de um caminho do qual jamais deveria ter-se afastado. Ficará livre para executar uma eventual estratégia de inserção na política representativa.
O governo, porém, depois de alguns dias de mal-estar e desgaste, seguirá em frente. Terá de se haver com o espectro de Moro, que permanecerá a circular em Brasília. Não alterará rota nem perfil. O governo Bolsonaro, afinal, ainda tem bons apoiadores e continua alto o custo do combate a ele, nas arenas políticas institucionalizadas e mesmo na sociedade civil. Preservará seu autismo explícito, que o faz seguir tão-somente as vozes diabólicas que povoam a cabeça do presidente e de seus filhos. Ficará na senda alucinada por onde enveredou. Até quando, ninguém sabe.
Amizade por conveniência
Acontece que, em política, assim como na vida, sempre há um dia após o outro. Movimentos de recomposição, avaliação de interesses recíprocos e cálculos custo-benefício são indispensáveis.
Foi o que ensaiaram fazer Bolsonaro e Moro no final do mês de agosto, precisamente no momento em que era mais forte o cerco à Operação Lava Jato, com ações cruzadas provenientes do Congresso, do STF e do próprio presidente da República.
O objetivo foi fazer a temperatura baixar nas relações entre o presidente e seu ministro. Bolsonaro necessitado do prestígio e da popularidade de Moro para tentar reduzir o efeito das pesquisas que mostram uma piora na avaliação do governo, e Moro convencido de que não terá como respirar sem o apoio presidencial, especialmente importante para reduzir o impacto das decisões do STF sobre a Lava Jato e do Congresso sobre o pacote anticrime ou a Lei de Abuso da Autoridade.
O abraço entre eles, porém, está sustentado por conveniências. Nada garante que o fogo não voltará a arder mais à frente. Bolsonaro já demonstrou que fará tudo para proteger os filhos e seus negócios. Sua postura de combate à corrupção virou mera promessa de campanha, sem qualquer tradução política prática. Não há indícios de que seu governo dará atenção dedicada ao problema da criminalidade e da corrupção.
Moro precisa do presidente para mostrar que ainda tem força no governo, no qual se tornou figura apagada. Não poderá largar pelo caminho a bagagem acumulada durante seus anos de juiz. Ele somente se tornou campeão de popularidade por causa da Lava Jato, modelou-a pedaço a pedaço, converteu-a em força política. Acumulou inimigos com isso. Associou-se tanto à operação que sem ela ficará sem rumo.
Se o bolsonarismo enquadrar o governo de cima a baixo, arquivando a agenda anticorrupção, Moro será um peão a ser sacrificado.
Amizades por conveniência são usuais em política. Bolsonaro pode já ter sugado todo o sangue de Moro. Um ministro da Justiça exangue e extenuado talvez agrade aos projetos políticos do presidente, mas com certeza não trará qualquer benefício a seu governo, nem muito menos à vigência de uma Justiça que se faça digna do nome.