As eleições de 2022 estão distantes, o momento é de cálculos e análises prospectivas. Há a crise do desgoverno Bolsonaro, agora envolvendo explicitamente as Forças Armadas, que estão a desarmar os planos autoritários do presidente. A pandemia dilacera a sociedade e é o ingrediente principal da situação, por seu absurdo custo em termos de vidas e por seu impacto generalizado.
Mas, talvez precisamente por isso tudo, é impossível não ver um farol de lucidez na carta-manifesto em defesa da democracia divulgada por seis potenciais candidatos à Presidência em 2022. Assinaram o documento Luiz Henrique Mandetta (propositor da iniciativa), Ciro Gomes, Luciano Huck, Dória, Eduardo Leite e João Amoedo.
Antes de tudo, porque ela ensaia, pela primeira vez de modo prático, a materialização de uma coalizão democrática — que vai da centro-esquerda à centro-direita — disposta a resgatar o País, unindo forças contra a reprodução do projeto autocrático de Bolsonaro. Pode não avançar efetivamente, pois política é encontros e desencontros, mas o gesto é animador.
O manifesto tem pegada política e doutrinária. Sabe do que fala. É generoso e contundente na defesa da democracia, das lutas democráticas e do reconhecimento de que estamos à beira de um precipício ameaçador: “Muitos brasileiros foram às ruas e lutaram pela reconquista da Democracia na década de 1980. O movimento “Diretas Já”, uniu diferentes forças políticas no mesmo palanque, possibilitou a eleição de Tancredo Neves para a Presidência da República, a volta das eleições diretas para o Executivo e o Legislativo e promulgação da Constituição Cidadã de 1988. Três décadas depois, a Democracia brasileira é ameaçada”.
Os signatários enfatizam o que tem sido o eixo mobilizador da sociedade brasileira desde quando se lutava contra a ditadura: “A conquista do Brasil sonhado por cada um de nós não pode prescindir da Democracia. Ela é nosso legado, nosso chão, nosso farol. Cabe a cada um de nós defendê-la e lutar por seus princípios e valores. Não há Democracia sem Constituição. Não há liberdade sem justiça. Não há igualdade sem respeito. Não há prosperidade sem solidariedade”.
O manifesto põe-se numa trincheira valiosa, da qual lança um alerta: “o autoritarismo pode emergir das sombras, sempre que as sociedades se descuidam e silenciam na defesa dos valores democráticos”. Assume-se assim o compromisso de barrar o que agride e deforma a democracia.
Não é pouca coisa. Agora, é ver se o iniciativa cresce em adesões e se traduz em atos mais amplos.
Uma questão permanece em aberto: Lula não foi convidado a endossar o documento. Ao que tudo indica, a iniciativa se dedica também a demarcar espaços na política, uma “terceira via” entre o lulismo e o bolsonarismo, o fortalecimento de um campo democrático moderado, no qual não haveria lugar para radicalismos ou populismos. Não deu chances para Lula se posicionar, o que sugere uma retração. Afinal, o ex-presidente não disse que será candidato e poderá perfeitamente atuar como um agregador de forças, papel que, aliás, o levaria muito mais longe na História, como o líder que se converte em estadista e luta pela unidade nacional.
O excepcional gesto inscrito na carta-manifesto precisa dar passos à frente, sem vetos ou exclusões. O farol joga luz forte numa direção: a de unir forças que possam tirar o País do trágico pesadelo que o perturba e o destroça desde 2018. E nessa união as esquerdas têm, por certo, lugar e função.