Fumaça e atrito

Ferreira Gullar, Técnica mista sobre papel. 22 x 29 cm.  1998
Ferreira Gullar, Técnica mista sobre papel. 22 x 29 cm. 1998
Militares ocupando cargos governamentais aos montes e militantes retrógrados em profusão alimentam uma bomba, cujo rastilho pode ser aceso com facilidade.

Com o País já bastante conflagrado e sentindo na pele os desdobramentos dramáticos da crise sanitária, seria trágico se, de repente, espocasse um atrito entre o Exército e o STF. Não há indícios, por ora, de que algo assim esteja a ocorrer. O que há é uma densa fumaça expelida pela publicação do livro-entrevista do general Eduardo Villas Bôas e em estágio de exploração pelos mais afoitos.

O general repetiu o que já se sabia: em abril de 2018, ele trabalhou para alcançar um consenso no Alto Comando do Exército e postou alguns tuítes, em tom de ameaça, para advertir o STF de que o povo brasileiro não toleraria a concessão de um habeas corpus que livrasse Lula da prisão. Admitiu, portanto, que o Exército atuou politicamente, imiscuindo-se em assuntos que fogem a suas atribuições. Naquele momento, os militares voltaram à pretensão de ser um “poder moderador” acima dos demais. A vitória de Bolsonaro, patrocinada por Villas Bôas, entre outros fardados, viabilizou a pretensão.

Na época, o registro foi processado, depois de devidamente repudiado. A Corte, pela palavra do decano Celso de Mello, deixou claro que não aceitaria ingerências de nenhum tipo, especialmente as “de natureza pretoriana que, à semelhança do ‘ovo da serpente’, descaracterizam a legitimidade do poder civil instituído e fragilizam as instituições democráticas”. Agora, com a divulgação das declarações de Villas Bôas, o ministro Edson Fachin achou por bem condenar os tuites dos militares em 2018 e reiterar a defesa do STF como guardião da Constituição. Foi secundado por Gilmar Mendes.

A ala mais retrógrada e extremista do bolsonarismo surtou. O inacreditável deputado Daniel Silveira — um misto de miliciano, agitador e lutador de muay thai — propôs cobrir de porrada os ministros do STF e demiti-los sumariamente, acrescentando à peroração estapafúrdia a defesa do AI-5 e da ditadura. Foi preso, a mando do STF. Uma nova crise abriu-se com o episódio.

O presidente da Câmara, Arthur Lira, e sua Mesa Diretoria enviaram representação ao Conselho de Ética da Casa pedindo a perda do mandato do deputado: “Além de atacar frontalmente os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) por meio de diversas ameaças e ofensas à honra, Daniel Silveira expressamente propõe medidas antidemocráticas contra aquela Suprema Corte, defendendo o AI-5, a substituição imediata e a adoção de medidas violentas contra a vida e a segurança de todos os ministros”. A representação da Mesa Diretora foi além. Acusou o parlamentar de quebra de decoro e citou oito trechos do vídeo gravado por ele que motivou sua prisão. Mencionou ainda que o deputado é investigado pela PGR, porque teria “estruturas e financiamentos destinados à mobilização e incitação da população à subversão da ordem política e social” e criaria “animosidades entre as Forças Armadas e as instituições”.

Por que se busca hoje recordar e explorar um atrito que o tempo se encarregou de silenciar? Se alguém ganha com isso são os que agem nas sombras, encobertos pela fumaça, que querem abrir fendas no STF, assim como estão conseguindo fazer no Poder Legislativo e nos partidos do centro democrático. Tudo isso passa pelo Palácio do Planalto. A intenção é clara: escantear o combate à corrupção, proteger os que operam com as mãos sujas e prejudicar eventuais adversários de Bolsonaro. De tabela, tumultuar um pouco mais o ambiente, que já contém ingredientes explosivos: a incompetência governamental, o desgaste da imagem das Forças Armadas, a falta de vacinas, o desejo de armar a população, a antecipação da disputa presidencial de 2022.

Quererão esses interesses incitar os militares e seduzi-los para o apoio a um governo que esconde nas mangas a carta de um golpe e tem, entre seus seguidores, militantes que acreditam estar na força armada a solução para os problemas do País?

É o que parece. Se terão sucesso ou se encontrarão os quarteis obedientes ao que prega a Constituição, veremos nos próximos episódios, cujo andamento dependerá da atitude que vierem a ter os democratas e as instituições. No governo Bolsonaro há militares por toda parte, invadindo esferas de atuação para as quais não têm preparo algum, nem incumbência constitucional. Há, também, militantes retrógrados em profusão, motivados para produzir rixas e atritos em sequência.

É uma bomba, cujo rastilho pode ser aceso com facilidade.

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