Gramsci, a esquerda e os conservadores

faces artísticas de Gramsci
Enxovalhar Gramsci não ajuda a disseminar racionalidade democrática e tolerância, pois se baseia em falseamentos e simplificações que criam ilusões e atrapalham a convivência política entre os que pensam de forma diferente.

Em entrevista à coluna “Direto da fonte” (10/3/2018), de Sonia Racy, o empresário Flávio Rocha, do Movimento Brasil 200, saiu-se com uma frase no mínimo curiosa: “Não somos caretas nem moralistas. Somos antigramscianos”.

Para o empresário, que se tem como pensador, “Gramsci talvez tenha sido o intelectual mais sórdido da humanidade. É um cara que chega a defender que tem que haver uma faxina em todos os valores judaico-cristãos para se construir uma nova sociedade em cima da estaca zero. Então, nós nos opomos à destruição intencional do que eles chamam de trincheiras do conservadorismo. A primeira dessas trincheiras é a mais sagrada, a família. Eu falo de família em todas as suas configurações – pra construir uma nova sociedade”.

É a plataforma em que Rocha se apoia para disparar contra a esquerda, que na visão dele “cultivaria a miséria” e o ódio. “Não são amigos dos pobres, são amigos da pobreza. Querem muitas cracolândias, querem as Farc, o MTST, o PCC. Porque essa é a matéria prima da revolução maluca que eles imaginam”.

O empresário circula à vontade nesse universo fantasmagórico e regressista. Tem o direito de dizer o que pensa, com certeza. Mas deveria se preparar melhor. O “antigramscianismo” dele é prova de grosseria e ignorância. Presta um desserviço à inteligência. É uma provocação dirigida contra a esquerda e os leitores de Gramsci, que abarcam um universo enorme e diversificado. Há liberais  e conservadores que se dedicam ao estudo dos textos gramscianos, convencidos do valor teórico que possuem. Gramsci nunca propôs, por exemplo, que se destruíssem as “trincheiras” da sociedade ou a família. Sua ideia de reforma intelectual e moral passava muito longe disso. Sua teoria jamais diria que é preciso partir da “estaca zero”. Diversos intelectuais não marxistas se entregaram a profícuos diálogos com seus Cadernos. Norberto Bobbio talvez seja o mais conhecido, assim como Oliveiros S. Ferreira, no Brasil.

Se Gramsci tivesse podido conhecer o pensamento de Flávio Rocha, ficaria tentado a inclui-lo entre os “lorianistas”, grupo de intelectuais italianos que valorizavam Achille Loria, professor de economia que, em sua volumosa obra, misturava uma leitura vulgar do marxismo com um positivismo acrítico e cientificista. Entre os “aspectos deteriorados e bizarros da mentalidade” desse grupo, Gramsci incluía: “falta de organicidade, ausência de espírito crítico sistemático, negligência no desenvolvimento da atividade científica, ausência de centralização cultural, frouxidão e indulgência ética no campo da atividade científico-cultural”. E atribuía aos que assim procediam uma clara “irresponsabilidade em face da formação da cultura nacional”. (Cadernos do cárcere, vol. 2, p. 257).

Loria tinha ideias esquisitas e falava, aparentemente, sem pensar muito. Certa vez, propôs que se combatesse a fome e emancipasse os trabalhadores valendo-se do expediente de lambuzar as asas dos aviões com visgo, o que “permitiria a evasão da presente sociedade graças à nutrição assegurada pelos pássaros enviscados”, que, aderindo aos aviões, poderiam ser consumidos pela população pobre.

Não se pode negar a Flávio Rocha o direito de propagar suas convicções. A crítica a ele não pode ser ideológica, pois seria improdutiva. Deve ser uma crítica lógica e estar embebida de tolerância. Sempre vale a pena apelar para que se qualifique o debate. Enxovalhar Gramsci não ajuda a disseminar racionalidade democrática, pois se baseia em falseamentos e simplificações que criam ilusões e atrapalham a convivência política entre os que pensam de forma diferente. Do mesmo modo que são inúteis as críticas genéricas que apresentam “a esquerda” como um bloco homogêneo dedicado a destruir os “valores judaico-cristãos”.

As relações entre Gramsci e as esquerdas não são unívocas. Qualquer tentativa de reduzi-las a um monólito estará sempre fadada ao fracasso.

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Rodiney da Silva
6 anos atrás

Concordo com o professor. E adianto que sou liberal na economia e libertário nos costumes. Gostaria de fazer uma breve observação. O falseamento de Gramsci é algo em marcha há bastante tempo, principalmente por conservadores da linha de Olavo de Carvalho. A maioria das pessoas que segue seu pensamento apenas reverbera suas ideias, pois não tem a leitura dos textos de Gramsci. E aqui está incluído o sr. Flávio Rocha. Gostaria de propor algumas questões ao professor Nogueira: Por que somente agora essa preocupação em tornar público o falseamento da filosofia de Gramsci? Seria por causa das várias falas conservadoras ter se tornadas de alcance popular? É preciso também lembrar que a pior culpada dessa ideia sobre Gramsci é dos próprios intelectuais de esquerda que nunca se importaram em rebater as acusações dos conservadores, mas, antes, fomentaram e potencializaram essa ideia mais autoritária para influenciar as massas militantes de esquerda.

Alfredo dos Santos Junior
6 anos atrás

Se estas são expressões do “novo” em nossa política. então podemos perder a esperança. Temo muito estas eleições.

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