Guerra de estigmas e falsas ilusões

Tilt Brush 11, by Adi Robertson
A direita extrema e a radicalização da esquerda encurralaram a esquerda moderada – social-democrática, reformista, socialista, liberal-socialista –, impedindo-a de marcar posição. O desentendimento e a intolerância aumentaram

Um traço da cultura de esquerda é a arrogância: achar que os outros não veem a verdade dos fatos. Somente a esquerda seria clarividente e estaria livre da ingenuidade, da alienação, da ignorância.

Nem todos de esquerda são assim, obviamente, e quero crer que a maioria se orienta por critérios de flexibilidade, de respeito pelos demais, de generosidade, que são a marca mais forte deste campo político e ideológico. A esquerda é heterogênea, abarca diferentes modalidades de pensamento, de conduta, de atitude diante da vida.

Apesar disso, é bastante comum a figura do militante de esquerda que carrega no bolso um manual de verdades e ensinamentos, utilizando-o para pressionar, criticar ou persuadir seus interlocutores.

Nenhuma posição política ou ideológica está imunizada contra esse fascínio pela arrogância, pela presunção de estar acima e à frente dos demais. Militantes e ativistas tendem a ser convictos totais, não deixam espaços para dúvidas ou ponderações. A direita extrema, por exemplo, é pródiga em delírios de soberba, passionais e irracionais, distantes da serenidade e da prudência. É um fascínio prepotente, gerador da certeza de possuir uma verdade que dispensaria qualquer justificativa lógica ou fatual – uma verdade, portanto, que não se mostra entranhada naquele que julga possui-la.

Quanto mais radicalizada é vivida uma posição, mais a empáfia e a brutalidade argumentativa prevalecem, especialmente frente a quem pensa de forma diferente. As críticas da extrema-direita e da esquerda radicalizada são quase sempre duras, passionais, repletas de adjetivos e frases desqualificadoras. A estigmatização dos adversários é uma espécie de alvo permanente, pois a convicção é que os estigmas ferem mais fundo, machucam e colam na pele do inimigo como sarna. São carimbos, marcadores, pouco importando que desprezem a honestidade ou o rigor.

Uma máxima dessa postura poderia ser: num combate, é irrelevante a verdade dos fatos ou a dignidade do adversário, o decisivo é destruí-lo.

A esquerda brasileira radicalizou-se muito nos últimos anos. Perdeu parte ponderável da generosidade que lhe é típica, da reflexividade crítica, da tolerância. Empobreceu-se como campo articulador dos desiguais, que se dispersaram. Deixou de propor, de atuar como polo pedagógico. Não houve plano nem intenção explícita nesse movimento, ele simplesmente foi acontecendo, determinado pelos fatos e pelas circunstâncias. A esquerda perdeu força na sociedade e como derivação terminou por fazer do PT seu bunker e seu aríete, em nome da ideia de que esse partido não só retinha o melhor do progressismo como também estava sendo caçado sem piedade pelas forças do capital e da reação.

Trabalhou-se sistematicamente para fixar esse horizonte no mundo intelectual, na universidade, nos circuitos artísticos, na política, no sindicalismo, na vida associativa. Infectou-se o discurso político com  falsas ilusões e palavras-chave que deveriam ser repetidas à exaustão, sem que se tivesse tempo de raciocinar. Foi um esforço bem sucedido, mas que teve um efeito colateral: o desentendimento, o fechamento dos espaços de cooperação, a intolerância, o empobrecimento do debate público.

Quanto mais se avançou nessa direção, mais a sociedade foi ficando estressada, desconfiada dos políticos, convencida de que a discussão política ou cultural não pode ser travada de modo civilizado, sem estigmas, berros e slogans de mobilização. Mais a direita foi crescendo, beneficiada por um estado de coisas marcado pela exasperação. Atiçadas por um lado e pelo outro, as redes sociais enlouqueceram. Os recintos de debate e reflexão converteram-se em local de protestos e manifestações.

Houve quem resistisse, mas sem conseguir furar o cerco. Os “resistentes” foram sendo empurrados para fora do círculo dourado do progressismo oficial, identificados com o inimigo a que se devia combater sem trégua. Foram combatidos com igual ferocidade pela direita extrema, que os via como comunistas disfarçados.

A esquerda moderada – social-democrática, reformista, socialista, liberal-socialista – foi sendo assim encurralada, vista pela esquerda radicalizada como prestando serviços aos reacionários e pela extrema-direita como colaboradora de progressistas corruptos. Ficou sem saber como demarcar um espaço.

Criou-se dessa forma um escudo que protegeu a esquerda radicalizada, facilitando-lhe o trabalho de dissimular seus equívocos, seus erros de conduta política, seu cinismo e seu apetite pelo poder. Protegida por esse escudo, a esquerda radicalizada pode continuar a praticar suas políticas, a defender seus interesses particulares, a cultuar seus mitos e heróis, a atribuir toda culpa pelos desacertos nacionais aos inimigos, aos “outros”. Essa esquerda governou o país durante extensos 13 anos e jamais admitiu ter feito escolhas equivocadas, nem sequer em decisões localizadas.

Ela se tornou, assim, uma esquerda não responsabilizável. Tudo o que de problemático aconteceu – a crise econômica, a crise fiscal, a péssima qualidade da política, o Estado inchado e ineficiente, a dificuldade de distribuir renda de forma sustentável, a fragilidade dos sistemas de proteção social, a violência, a insegurança, a corrupção oceânica — tudo isso, e mais um pouco, teria sido provocado pelos inimigos de classe, pelos outros, pela mídia do capital, pelas circunstâncias externas. Numa versão ainda mais esdrúxula, seriam erros causados não pelos governos petistas que se sucederam desde 2003, mas pelo impeachment de Dilma e pelo período Temer, uma “herança maldita” legada pelo PT ao próprio PT.

A esquerda no poder seguiu impávida, jurando ter mãos limpas e intenções puras. Não mudou de orientação nem quando sofreu derrotas eleitorais acachapantes, como em 2016, ou quando foi pega com a mão na botija da corrupção. Nada a atingiu, nada fez com que mudasse de posição, nada lhe serviu de alerta. Ao contrário, quanto mais se complicava mais atuava para ampliar os vetos, os estigmas, uma prática política viciada e autoritária.

A radicalização, porém, não foi improdutiva.

Serviu antes de tudo para promover a recuperação do PT, sua volta ao palco com uma bandeira ainda mais empolgante, a da vitimização de Lula. A estratégia repôs o PT como força eleitoral, com o mesmo estoque de ideias e condutas de antes, só que ainda mais histriônicas e performáticas. Em vez da “luta de classe” contra o capital, surgiu a luta dos condenados da terra em prol de um passado mitificado, onde a felicidade reinava.

A radicalização, em segundo lugar, empoderou a extrema-direita, dando-lhe argumentos e oxigênio para disseminar um repertório regressivo misturado com conservadorismo moral e repúdio ao petismo.

E, por fim, ajudou a dizimar o centro liberal-democrático, que não se mostrou competente para atuar com eficácia no ambiente tóxico propiciado pela radicalização, cedeu a seus próprios caprichos e não soube travar qualquer combate.

Hoje, faltando poucos dias para as urnas de 7 de outubro, o cenário que se desvenda é de um choque épico entre uma esquerda radicalizada sem propostas e uma extrema-direita sem ideias. Ninguém a rigor poderá sair vencedor dessa refrega. O país do próximo ciclo dificilmente será governável, dada a reiteração de narrativas políticas que dividem a sociedade em campos inconciliáveis e que tratam os moderados como seres repulsivos ou como inocentes úteis.

Precisamos desarmar essa bomba.

A sorte de todos é que a vida seguirá. Falaram tanto em golpe e perseguição “de classe” que criaram um cenário de horror no qual a democracia estaria sendo destruída. Ela, porém, enquanto institucionalidade, não cedeu e conseguiu resistir, em que pesem a má qualidade da representação política, a crise dos partidos e a ausência de projetos de sociedade. Enquanto cultura, porém, o risco de retrocesso democrático é enorme. Faltam cidadãos educados, falta educação democrática, faltam lideranças e elites em todos os campos da vida: na política, na intelectualidade, na área técnica, entre os artistas, no mundo sindical. Viramos um corpo desconjuntado e sem cabeça.

Em algum momento, essa miséria de lideranças e valores cobrará seu preço. Nesse ponto, os moderados serão chamados para entrar novamente em campo: os articuladores, os que tecem redes e constroem pontes. Porque sem eles os pedaços não conseguem se compor e os extremos se prolongam, agarrados às suas próprias boias de salvação.

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Sonia K Guimaraes
6 anos atrás

Querido Marco,
Seu artigo até me emocionou. Há muito tempo não lia uma análise tão lúcida ao explicar as razões da polarização que hoje nos assalta.
Grande abraço

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