O ano nem bem começou , mas já se sabe que janeiro será inteiramente tomado pelo julgamento de Lula em Porto Alegre, marcado para o dia 24.
Eleição sem Lula é fraude?
O slogan atiça, encapsulado pelo afã de fazer do ex-presidente o centro do processo político nacional e das eleições que se aproximam. Traz consigo uma tática voltada para preservar e reerguer o PT. Pode ser que funcione, pois em política não há nada propriamente líquido e certo. Mas o tiro também pode sair pela culatra e aprofundar a agonia petista, empurrando o partido para o gueto, longe do mundo da vida.
Eleição sem Lula não é fraude. Como não seria sem Ciro ou Marina, Alckmin, Manuela ou Boulos. Não é fraude porque processos eleitorais democráticos são disputas entre vários postulantes e o impedimento (a morte, uma doença, a desistência ou a prisão) de um deles não macula o processo inteiro. Só haveria fraude caso houvesse censuras e proibições atrozes, interferências estranhas ou manipulação desbragada dos resultados.
Mesmo quando manipuladas ou “controladas”, eleições podem exibir virtudes. Foi o que aconteceu, em certa medida, na pior fase da ditadura de 1964. Sabia-se que as eleições transcorriam em clima de exclusão, perseguição, repressão, censura e arbítrio, mas nem por isso os democratas deixaram de disputá-las. Exploraram as fissuras do regime, suas contradições, fazendo com que fossem aproveitados os espaços em que circulava algum oxigênio. O voto nulo e a luta armada foram derrotados. A democratização avançou. A ditadura ruiu.
Se vier a ser impedido, Lula o será por ter cometido crime de corrupção aos olhos da Justiça. Impedir que condenados disputem eleições não é fraude, mas, ao contrário, é valorizar as eleições, possibilitar que ocorram com maior paridade e limpeza.
Ah, mas Lula está sendo condenado sem provas! Vários anos depois de iniciadas as investigações, acreditar na inocência de Lula é acreditar em Papai Noel. Há quem acredite, evidentemente, mas os que defendem a tese da fraude não estão entre os crentes: agem em nome da exploração da figura de Lula, devidamente santificada. Para eles, pouco importa se Lula é ou não culpado. A ideia é carregá-lo como um estandarte, um “mito” que funcionaria para resgatar um projeto de poder que em algum momento esvaneceu.
Ah, mas não é só isso! O processo que investigou, julgou e condenou Lula estaria cheio de atropelos e desrespeitos, teria avançado de forma seletiva, com o único intuito de impedir que o ex-presidente volte a governar o país. A Justiça que o condena é a “Justiça do capital”, não a do “verdadeiro Estado democrático de direito”. O ex-presidente somente copiou o que todos os políticos brasileiros sempre fizeram: valeu-se das benesses do poder, dos expedientes de caixa 2, dos agrados dos poderosos, não muito mais que isso. Enriqueceu, é verdade, mas só depois de uma longa trajetória de suor e lágrimas. Enriquecer e promover a família, além do mais, não é crime. É o que se espera de todo cidadão responsável.
Lula não é mais nem menos inocente do que muitos outros políticos brasileiros. Integra uma classe que aprendeu a fazer política num sistema corrompido que terminou por formatá-la e devorá-la. Não é melhor nem pior. Seu prontuário é enorme, mas ele também tem méritos. Cumpriu uma função na vida nacional, sabe se mexer no terreno escorregadio da política, é pragmático, não liga para ideologias e topa qualquer acordo que o beneficie.
Poder-se-ia, portanto, atenuar as culpas de Lula, relativizá-las, distribui-las de maneira mais equilibrada. Por essa via, seria possível até mesmo livrá-lo da prisão eventual: passe-se um pano limpo na sujeira acumulada, celebre-se um “pacto” para que se comece a fazer política de outro modo e, com isso, recriem-se as bases e a cultura do sistema político. Com tudo o que tem a seu favor, Lula poderia ser um dos artífices dessa repactuação.
Nada disso, porém, é buscado pelos que falam em “fraude”. Ao se aproximar o julgamento em segunda instância, ameaçam invadir Porto Alegre com uma caravana de proporções bíblicas, integrada por ativistas de movimentos sociais, parlamentares e dirigentes petistas. A ideia é intimidar os juízes e mostrar o prestígio de Lula para a plateia.
Lula na prisão teria um efeito simbólico não desprezível: o de se ter um poderoso atrás das grades. Não muito mais do que isso. Lula, porém, é um poderoso de tipo especial: tem poder, sabe usá-lo e é ao mesmo tempo uma força popular, que fala ao coração de muitos brasileiros, dorme em seu imaginário. Não é uma reserva moral, mas um recurso político.
Ele sabe disso. A sua maneira, metamorfose ambulante, tem feito o possível para escapar do cerco em que se encontra. Fala contra os “golpistas”, mas promete aliar-se a eles e aos que estão “arrependidos”. Corteja as classes médias e o empresariado, apresenta-se como moderado, alguém que não é radical e aprecia o centro, alisa o MDB como se fosse seu bichinho de estimação, prometendo mundos e fundos caso venha a ser eleito. Combina tudo isso com uma dedicação extremada ao seu próprio mito (base de seu prestígio popular) e com a retórica indignada que compartilha com certas alas do PT.
Esticará a corda até o limite, abusando de todos os recursos jurídicos para escapar da condenação e da Ficha Limpa. Se não conseguir, tentará transferir seus trunfos para um substituto, do qual será a sombra. De um modo ou de outro, não ficará alijado da disputa. Ao contrário, irá protagonizá-la em posição de força.
Como então “fraude”?
Hoje já não é certo que Lula seja um candidato imbatível. Seu brilho não é tão intenso quanto antes. Sua força eleitoral depende do prolongamento da inoperância do campo democrático. Ele paga um preço pela trajetória que seguiu. Não pelos oito anos em que governou, mas pelo que veio depois e contou com sua aprovação. Não porque tenha sido “desconstruído” pela direita e sim porque não soube ser adequadamente construído pela esquerda. Afinal, o que ele pensa e propõe hoje, além da promessa de um retorno ao passado risonho dos anos de fartura? O que pensa e propõe seu partido?
A tática da “fraude” e do Lula-estandarte contra as elites é ruim, mas serve para agitar. É um desdobramento da retórica do “golpe”, que já bateu no teto mas ainda circula por aí.
No fundo, trata-se mesmo de agitação, não mais do que isso. A tática funciona como confissão de um partido que desistiu de disputar hegemonia (de dirigir as massas e disseminar valores democráticos), que optou por se dedicar a cuidar das próprias forças e a se recolher para lamber as próprias feridas. É uma escolha, com seus efeitos e consequências.
A insistência em fazer de Lula o seu plano A, de levá-lo como estandarte pelo país afora, de se recusar a buscar alternativas que passem por dentro da grande política, poderá fazer do PT o instrumento de que necessitam as direitas para encaixotar a esquerda e despachá-la para o espaço.
Parabéns, seu artigo é instigante, mas, por favor, poderia explicar melhor essa frase: “Vários anos depois de iniciadas as investigações, acreditar na inocência de Lula é acreditar em Papai Noel.”?
Existe alguma prova concreta no processo julgado pelo juiz S. Moro? Peço, com todo respeito, que indique essa prova. Observe que estou me referindo ao processo que vai ser apreciado no TRF-4, não me refiro a todos os outros processos. Gostaria que a resposta fosse específica e restrita ao parecer do dia 24/01. Agradeço a atenção.
Obrigado pelo comentário, Alexandre. Tua pergunta é pertinente. Tenho sustentado, em outros artigos, que a abordagem jurídica de um julgamento que é eminentemente político empobrece a análise. Nenhum julgamento de um líder político pode se limitar à apresentação de provas materiais, especialmente quando se trata da apuração de casos de corrupção. Como você sabe, sistemas corrompidos caracterizam-se pela corrupção das provas, ou seja, elas dificilmente aparecem de forma cabal. Os empresários que foram presos pela Lava-Jato, tanto os que fizeram delações premiadas como outros, foram férteis em relatos que indicaram os caminhos das transações corruptas. Lula não escapou delas. No caso do apartamento no Guarujá, há claros indícios de que o imóvel serviu de base para uma transação pouca escrupulosa envolvendo o ex-presidente. Os depoimentos de Leo Pinheiro, dono original do imóvel, foram ricos a este respeito. Creio que suficientes.
Aceito sem dificuldade a constatação de que a qualidade das provas incomode os defensores de Lula. Seria ótimo se elas pudessem ser mais abundantes e ricas, mas é o preço que se está pagando por se estar apurando crimes de corrupção. Ocorreu algo bem parecido no caso do mensalão, anos atrás.
Pessoalmente, lamento muito que as práticas de governo de Lula e do PT tenham derivado para a incorporação do que há de pior e mais nefasto na conduta da classe política brasileira, que construiu toda uma longa trajetória de instrumentalização e uso privado dos recursos públicos, do Estado. O mais surpreendente é que, em 13 anos de governo, o PT nada fez para coibir ou atenuar a reiteração de condutas que se mostravam inadequadas tanto para a República brasileira quanto para um partido que se proclama de esquerda.
Por último, acrescento que a Justiça brasileira — que, como toda e qualquer Justiça, não é imune à influência dos interesses dominantes e da lógica do conflito político e social — tem-se mostrado, grosso modo, à altura das expectativas sociais. Penso que deste ponto de vista o país melhorou. E tem sido pelos circuitos da justiça que alguns poderosos (empresários, banqueiros, políticos) estão sendo levados à prisão e confessando seus crimes, algo que jamais aconteceu no Brasil.
Não acredito em Papai Noel, mas também não sou juiz nem advogado. Procurei apontar, no texto, como vc deve ter visto, que Lula não é culpado sozinho. Como membro da “classe política” brasileira, ele compartilha com ela todas as características culturais. E ele, com a força política que tem, poderia muito bem ser o artífice de uma repactuação que limpasse o lixo acumulado e criasse um ambiente mais democrático e republicano para a política prática. Não se dedicou a fazer isso e talvez esteja sendo sacrificado por isso.
Atenciosamente,