A decisão do STF sobre a presunção de inocência e a saída de Lula da prisão, vista como expressão de liberdade, um valor que em si mesmo mobiliza, alteraram a dinâmica política nacional. Por vários motivos, mas sobretudo porque Lula é um ativo político e simbólico valioso. Sua circulação Brasil afora produzirá deslocamentos no alinhamento das forças que se opõem ao governo Bolsonaro e fará com que o bolsonarismo se reposicione.
Foram 580 dias preso. Nesse intervalo, o país mergulhou nas trevas e no extremismo retórico, ideológico. Peças mudaram de lugar. O Congresso Nacional encontrou novo eixo. A Lava Jato murchou. Sérgio Moro, antes visto como acima do bem e do mal, se converteu em um ministro de segunda linha. O bolsonarismo cresceu e impôs à sociedade outro padrão de radicalismo, recheado de agressividade, demagogia e ofensas.
Lula passou incólume por tudo isso. Poupou-se do confronto e acumulou forças. Saiu da prisão novinho em folha, como disse. Soube preservar-se e acrescentou uma camada a mais no próprio mito, com a incorporação da ideia de vítima e prisioneiro político.
Mas a vida seguiu e Lula, agora, terá de traduzir sua força simbólica em força política, recuperando e atualizando o território que ocupava antes, quando os “inimigos” eram tucanos e liberais. Terá de cauterizar as feridas que se abriram no próprio campo em que se situa. Remontar alianças. Conversar, operar nos bastidores, entrar no jogo político. Precisará assimilar novas teses e ideias, encontrar uma “narrativa” que dialogue com a sociedade e justifique as diversas acusações de corrupção que carrega nas costas. Ele sabe que precisa encontrar uma maneira de fazer autocrítica, se é que deseja mesmo posicionar o PT e sua biografia em outro patamar.
De que modo fará isso, não se sabe. Poderá fazê-lo de modo estreito ou ampliado, da boca para fora ou com sinceridade. Fechar-se na esquerda nacionalista ou enveredar pelo centro. Bater sem dó na tecla do desenvolvimentismo ou abraçar uma ideia mais avançada de ambientalismo e sustentatibilidade.
Não dá para concluir muita coisa de seus primeiros discursos após a saída de Curitiba. O tom e a forma, com as bravatas conhecidas, fazem parte da coreografia de um Lula abraçado por sua gente. Não fornecem um roteiro claro para o futuro. Mas acendem uma luz preocupante: será esse o Lula que pretende conduzir o Brasil a outra etapa? Movido a confrontos generalizados e a pregações salvacionistas?
É um exagero, por isso, dizer que Lula organizará a oposição ou que sua libertação representará o renascimento de um oposicionismo que restava adormecido desde o final das eleições de 2018. Se o personagem que saiu da prisão vier com sangue nos olhos, mascando ressentimento e desejo de vingança, nada de novo acontecerá. Será a mesma contestação de antes, com as mesmas narrativas que prevaleceram em 2018. Será difícil que dela surja algum sopro de renovação.
De um ou outro modo, a ação de Lula poderá funcionar como um alarme e um enigma para os democratas: organizem-se, caso contrário os devorarei.
O Lula dos primeiros dias após a saída da prisão é o mesmo que deu um nó tático em seu próprio partido. O PT é uma usina de ideias e quadros, há nele uma disposição surda para ser uma “força nova”. Tudo isso, porém, resta paralisado pelo personalismo de Lula: um grito parado no ar. As correntes internas silenciam, não se manifestam, não surge uma voz que se erga para, no mínimo, fazer ponderações ao grande líder, que é “incriticável”, convertido em santo e tratado como suma sapiência.
Lula não é unanimidade entre os diferentes agrupamentos antibolsonaristas da sociedade. Se desejar a eles se somar e ajudar a organizá-los, terá de ceder em muitos pontos e abrir mão de um protagonismo que é tudo o que ele mais deseja agora e no qual se formou. Não dá para saber, de antemão, se estará disposto a dar essa guinada. E também não é possível dizer que encontrará receptividade incondicional fora do círculo mais definido do PT e dos movimentos que o orbitam. Será mesmo que a população o receberá de joelhos, de olhos fechados e braços abertos?
Uma boa mesa de negociações poderia contribuir para que se aparem arestas, mas as tratativas serão complexas e não há porque imaginar que as resistências recíprocas cederão com facilidade. Entre os eleitores liberais e mais ao centro, há muita rejeição a Lula e ao PT, o que complica entendimentos.
Mas Lula não é Bolsonaro de ponta-cabeça, invertido, como se um fosse a cópia transfigurada do outro. Cada qual com seu saraquá. São animais políticos distintos, com trajetórias e grandezas bem diferentes. Em que pesem seus tropeços, suas apostas equivocadas e seu personalismo demagógico, Lula tem uma dignidade que falta em seu antípoda típico-ideal. Algo que ele não parece querer aproveitar no momento.
Lula e Bolsonaro são subprodutos de uma polarização que escolheram encarnar. Seguem um script que, com o tempo, ficou maior do que eles e do qual não têm como escapar. É um roteiro que os domina e pode levá-los à radicalização insana. Opostos que se atraem.
Essa polarização estagnou, jaz estacionada no coração da política nacional. Embora Lula não seja Bolsonaro invertido, suas pegadas estão forçadas a acompanhá-lo, e vice-versa. Um pisa a trilha do outro, cegos para o restante do cenário. Tem sido assim desde 2018 e não há indícios de que os exércitos de um e outro se mostrem dispostos a depor as armas. Além do mais, caminham sobre um terreno minado, fragmentado e resistente ao diálogo. Há um clima social desejoso de resolução imediata, quando tudo demonstra que o passo-a-passo é o único caminho.
A contraposição tem ingredientes “lógicos”, mas as polarizações são mais amplas. Atravessam o campo político, incluem as guerras identitárias e culturais, os conflitos regionais. Não se tem somente Lula vs. Bolsonaro, ainda que isso possa ser dominante. O confronto está sobredeterminado por outros choques ou divergências que, bem calibradas as lentes, formam a parte substantiva do jogo: a polarização lulismo vs. bolsonarismo funciona como trilha sonora.
No tabuleiro nacional os jogadores tratam de decidir quais e como serão feitas as reformas da economia, da gestão, do trabalho, das políticas sociais. Isso significa que o centro do problema está na reorganização do pacto social que tem prevalecido na marcha do capitalismo brasileiro. É algo que não se conseguirá só com a definição de quem estará do Palácio do Planalto.
Lulistas vs. bolsonaristas pesam, mas sozinhos não têm o poder de definir ou alterar o rumo dos acontecimentos. Se atingirem o paroxismo, têm potencial para se destruírem reciprocamente. Outros “polos” existem entre eles. Alguns já são fortes, outros ainda podem se fortalecer.