Marta, Lula, Guedes e a conjuntura

Cartoon de Jota Camelo
Cartoon de Jota Camelo
A política democrática não fabrica inimigos ocultos, nem atribui à combatividade retórica um poder de criação que ela não tem.

Carimbar é desses verbos marotos, com vários sentidos. Pode significar “aprovar” e “marcar”, mas também “assinalar” e “dar visibilidade”. Uma pessoa marcada é alguém estigmatizado, convertido em alvo.

Nas últimas semanas circulou a informação de que o PT – leia-se, Lula – estaria cogitando de incluir Marta Suplicy na cabeça da chapa do partido às eleições municipais de 2020. A ex-prefeita paulistana foi carimbada.

A justificativa seria dupla. Marta teria sido “a melhor prefeita de São Paulo” (Lula) e está disposta a “trabalhar por uma frente para enfrentar a extrema direita” (Jilmar Tatto). A primeira razão é subjetiva, ainda que se deva considerar que Marta de fato foi uma governante bem avaliada, que realizou ações importantes para a cidade e especialmente para a população da periferia. A segunda razão é factual.

Mas a questão está longe de ser simples. Não foi por acaso que Gleisi Hoffmann, presidente nacional da legenda, se apressou em dizer que Marta poderia “compor a chapa do partido”, mas que entre ela e o PT “não dá muita liga”.

Dadas as altas taxas de rejeição de que o PT desfruta em São Paulo, a chapa por ele projetada, com Marta na cabeça ou não, terá de dar nó em pingo d’água para vencer.

Ao mencionarem o nome da ex-prefeita, os setores petistas tentam passar a ideia de que o PT disputará as eleições em um esquema de alianças ampliadas. Isso, porém, contradiz o que Lula tem proposto, qual seja, de que o partido deve encabeçar as chapas para “fazer a defesa da legenda, de seus dirigentes e do legado dos governos petistas”.

Marta Suplicy militou no partido, dele se afastou e passou a criticá-lo com atos e palavras (votou a favor do impeachment de Dilma, por exemplo). É intrigante o que ela faria numa disputa que se desenha como repleta de dissonância e sem uma base de sustentação bem definida.

Tanto que Marta já sinalizou ter dúvidas a respeito e passou a conversar com o PDT e o PSB, além de reforçar sua agenda de contatos amplos, focada na construção de uma frente democrática que seja efetivamente ampla.

Obsessões autoritárias

O ministro Paulo Guedes tentou se defender, mas só conseguiu atiçar o fogo. Ao responder às promessas de Lula de que mobilizaria o povo para contestar a política econômica do governo, saiu-se com a frase infeliz: “Não se assustem se alguém pedir o AI-5”. Foi durante entrevista coletiva em Washington, no último dia 25 de novembro.

Pode não ter querido defender a medida que, durante a ditadura militar, permitiu que o regime suspendesse direitos, cassasse mandatos parlamentares, reprimisse manifestações de oposição e perseguisse quem o contestasse. Mas a frase, ambígua e provocativa, foi suficiente para tumultuar um pouco mais o já deteriorado ambiente político. Inflamado, o ministro esclareceu que jamais defenderia medidas de repressão.  Só fez piorar. A impressão que ficou é que ele não tem apreço pela democracia e acha “natural” um eventual endurecimento. Deixou claro que o governo está disposto a dobrar a aposta diante das bravatas de Lula.

A declaração veio se somar a outras semelhantes, que nos últimos meses têm integrado a narrativa governamental e buscam compor um cenário repleto de inimigos imaginários.

Guedes é ministro de um governo politicamente retrógrado e que não disfarça sua vocação autoritária. Procura se encaixar nesse arranjo com uma política econômica fortemente liberal, que deseja “desregulamentar” a economia e abri-la completamente ao mercado. Acredita que o liberalismo econômico leva automaticamente ao liberalismo político. Atropela a lógica teórica liberal e está sempre pronto para ecoar as obsessões do próprio governo que integra, fazendo com que sua política econômica liberal se acomode ao autoritarismo tacanho do atual presidente.

Com o episódio, Guedes exacerbou a combatividade oposicionista, que ele despreza, e aumentou a desconfiança dos investidores que tanto preza. Mostrou que quer distância da política, não sabe assimilar críticas e é intolerante com a contestação.

Atitudes que não cabem em uma república democrática e espalham toxinas que empurram o País de volta aos anos de chumbo.

Vozes da polarização

Ouve-se, de forma recorrente, nas redes e fora delas, frases categóricas afirmando que a polarização Lula x Bolsonaro é uma “invenção da mídia”, ou da grande imprensa, feita sob medida para prejudicar o PT e apoiar o “centro democrático”.

Do mesmo modo, com idêntica veemência, e principalmente à esquerda, fala-se que Lula é, sim, o oposto perfeito de Bolsonaro – o contrário dele – e deve combatê-lo sem tréguas, ou seja, deve com ele polarizar. É uma contradição, mas as pessoas seguem em frente.

Amigos e seguidores de Bolsonaro procedem da mesma maneira, com uma dose adicional de fanatismo e violência.

Não deixa de ser curioso que a acusação contra a mídia e a apologia da polarização caminhem abraçadas nos mesmos discursos, cujos autores não se dão conta da contradição lógica em que se envolvem.

Tal incongruência é fruto de uma visão torta da política e do processo político em curso. Ver a mídia como conspiradora permanente mistura-se com a defesa de uma polarização que não estaria dada pela vida, mas precisaria ser criada. Ou seja, seria fruto de uma escolha, em parte unilateral (a polarização do bem) e em parte artificial (a polarização do mal). A ausência de dialética é total.

A deputada Gleisi Hoffmann, reeleita para a presidência nacional do PT, tem contribuído sistematicamente para generalizar essa incongruência e, por extensão, para disseminar confusão. Seu recente discurso no congresso do partido, por exemplo, reiterou a acusação às “invencionices” da mídia e o “desejo de luta” da esquerda, sugerindo que o PT deve estar preparado para o que der e vier.

O próprio PT saiu do congresso oscilando entre polarizar com a extrema-direita, formar uma “frente ampla” e fortalecer a aliança com os partidos de esquerda.

Polarizar e explorar o conflito são ações inerentes à política. Quem não vê isso não sabe bem do que está falando. Mas da política democrática não fazem parte a fabricação de inimigos ocultos e a atribuição à animosidade retórica um poder de criação que ela não tem. Qualquer “enfrentamento positivo”, ou seja, destinado a solucionar problemas e a promover avanços civilizatórios, precisa de mais, muito mais.

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