As coisas devem ser contadas como de fato ocorreram.
Lula foi condenado em segunda instância e preso em abril de 2018. Desde o início, o processo contra ele esteve cercado de dúvidas, liminares e escaramuças judiciais, que formaram uma sujeira espessa que atravessou os anos. As alegações que o incriminavam eram muitas e falava-se que havia provas robustas. No entanto, tudo se fixou num pequeno apartamento “triplex” no Guarujá, cercado de mistério ainda maior. A defesa argumentava que Lula sofria com a prática de “lawfare” empregada por Moro, que se baseava em manobras jurídicas articuladas com ações midiáticas espetaculosas com o propósito de afetar moralmente o acusado e o condenar na opinião pública, independentemente da marcha das investigações.
É importante recordar os fatos.
Lula foi processado e preso a tempo de ser impedido de concorrer à presidência da República. O juiz Sergio Moro, que conduziu as apurações e a condenação, agiu com desenvoltura ímpar, turbinado pela Operação Lava Jato, que o convertera numa espécie de herói nacional. Entrincheirado em Curitiba, nunca escondeu que Lula era seu alvo principal, a cereja do bolo, o vértice para onde corriam todos os rios da corrupção sistêmica. Sempre deixou claro que faria o possível para condená-lo e afastá-lo da vida pública. Com a vitória de Bolsonaro, Moro escancarou o jogo: foi para o ministério, de onde seria expelido meses depois.
Foi um caso claro de obstinação persecutória.
Como, porém, os trâmites foram cumpridos e o ex-presidente só teve a prisão ordenada pelo TRF-4 após a denegação do habeas corpus pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, os participantes do processo se multiplicaram. Moro foi parcial, mas contou com a aprovação das diversas instâncias do sistema de Justiça.
Acontece que, em novembro de 2018, já passadas as eleições presidenciais, a defesa de Lula entrou no STF com um pedido de habeas corpus contra as atitudes e decisões de Moro. Não havia ainda a Vaza Jato, nem os hackers, nem The Intercept. O que fizeram os doutos magistrados? Sentaram em cima do caso, comandados por Gilmar Mendes, que pediu vistas quando o plenário parecia tender contra Lula. Sim, precisamente ele, Gilmar, inimigo declarado do juiz de Curitiba, que teve nas mãos a oportunidade de mudar o rumo do caso e nada fez. Agora, num ato voluntarioso e carregado de ressentimento, talvez de culpa e vergonha, decidiu devolver o processo e advogar, com rara veemência e grosseria, pela suspeição de Moro. A 2ª Turma o acompanhou por 3 votos a 2.
A pergunta é intrigante: por quais designíos jurídicos e jurisprudenciais o STF demorou mais de dois anos para concluir sobre a parcialidade de Moro, as falhas de encaminhamento e os erros de condução processual? Por que Gilmar não devolveu antes a vista pedida, justo ele que, na sessão de ontem, parecia indignado com o absurdo jurídico do caso? Precisou de mais de dois anos para chegar a uma conclusão? Por que os integrantes da Suprema Corte coonestaram uma obscenidade que penalizou Lula e foi absolvendo Moro, que virou ministro, comeu o pão que o diabo amassou, flertou com a fama e caiu no ostracismo?
Pode-se arriscar: por conveniência política e por covardia. Acharam por bem dar um tempo a Moro e manter Lula sob pressão. Não queriam entrar em atrito com Bolsonaro e com a nova correlação de forças políticas. Deve ter havido, também, algum constrangimento de tipo corporativista, já que o processo envolveu diversos juízes das diferenças instâncias, que ficariam comprometidos com a suspeição de Moro. A Justiça como um todo, de cima a baixo, ficou mal com o episódio. Mostrou uma face obscura e pouco criteriosa. Moro foi parcial e mal intencionado, mas sua culpa precisa ser compartilhada com todo o sistema.
A anulação das condenações de Lula e a suspeição de Moro têm um sabor de justiça, repõem certas coisas no devido lugar. Foram decisões tomadas em nome do Estado de direito e da justiça imparcial, o que é bom, muito bom. Jogam a última pá de cal na Operação Lava Jato, que nasceu em glórias mas ajudou a criar mais confusão na vida política nacional. Nem sempre a heterodoxia hiperativista leva aos melhores resultados. Tanto que hoje, ao assistir ao enterro de uma operação tida como exemplar, o conjunto da classe política comemorou.
O combate à corrupção, a partir de agora, terá de encontrar novos caminhos. Os seguidos até aqui fracassaram, ainda que o legado da Operação Lava Jato possa ser tido como histórico e positivo. Será o caso de verificar se os eventuais avanços obtidos se institucionalizaram a ponto de evitar que os ilícitos voltem a ser produzidos com a mesma intensidade de antes. Teremos de estabelecer se será preciso começar do zero ou se o melhor é nos conformarmos com as fraquezas da alma humana.
Lula livre e desimpedido para concorrer novamente à presidência, ou a outra cargo qualquer, valoriza o Estado de direito e o tão falado “devido processo legal”. Mas nem por isso o País fica melhor, nem por isso há como vislumbrar um futuro que faça jus à grandeza nacional e cauterize a desgraça popular.
Enquanto os ministros da 2ª Turma se engalfinhavam para decidir se Moro foi ou não parcial, o País chorava 3251 mortos em 24 horas.