Não é fácil falar de morte em política. Ela ocorre, porém, como em qualquer outra área da vida. Atinge pessoas e organizações, ideias e promessas. É física (votos, cargos, posições) e é sobretudo simbólica (imagem, identidade). Mas a política está atravessada pela segunda chance: quem eventualmente morre pode renascer mais à frente, com a mesma roupagem ou alguma nova maquiagem.
A única morte eleitoral de 2020 ocorreu no campo do bolsonarismo, do presidente em particular, cujos candidatos tiveram desempenho pífio. A “nova política” e o PSL caíram juntos. Houve clara manifestação popular de rejeição a Bolsonaro e a seu estilo de atuação política.
A partir de agora, Bolsonaro está nas mãos do “Centrão” e de seus desejos. O bloco informal, integrado por dez legendas (Progressistas, PSD, PL, PTB, Republicanos, PSC, Solidariedade, Avante, Patriota e Pros), é basicamente de direita e decididamente fisiológico. Seus partidos podem chegar à prefeitura de 900 municípios. O PSD venceu no primeiro turno em Campo Grande e Belo Horizonte, passando para o segundo turno em outras dez cidades. Alguns deles têm musculatura: PP, PL, PSD e Republicanos, com boas bancadas na Câmara dos Deputados. Outros são nanicos, mas têm sangue nos olhos e bastante apetite. Juntando tudo, aumentaram o poder de barganha com as vitórias em 2020. O MDB, que também tem capilaridade (disputará o segundo turno em 12 municípios), flutua por ali. O partido perdeu 261 prefeituras (foi de 1.035 para 774).
Houve feridos, alguns ficaram em estado de risco.
O mais grave foi o PT, que piorou a performance exibida em 2016, que já fora péssima. Naquele ano, elegera 256 prefeitos, depois de ter chegado a 630 em 2012. Em 2020, as projeções indicam que deve alcançar 170. Ficou fora de todas as capitais e das 90 cidades com mais de 200 mil eleitores, à exceção de Vitória e Recife, nas quais foi ao segundo turno. O partido repisou o mesmo terreno de sempre, não se renovou, não encontrou um eixo. Viu sua “hegemonia” ser abertamente contestada pelo PSOL, pelo PDT, pelo PSB e pelo PCdoB. A crise interna se agravou e será interessante ver como tudo isso será digerido pelo partido.
O PSDB saiu chamuscado, mas teve ampla compensação com Bruno Covas em São Paulo, que soube se livrar do abraço de urso de Dória. Os tucanos, porém, não ficaram mais fortes para disputar a liderança da centro-esquerda, sua marca desde as origens. O partido caiu de 785 para 512 prefeitos eleitos no primeiro turno.
Olhando o mapa nacional, e deixando de lado os pequenos fracassos e os feitos localizados, dois partidos podem se proclamar vitoriosos.
Um deles é o PSOL, pelo marcante desempenho tido em São Paulo e em Belém, e pela “nacionalização” da legenda. Foi a grande novidade de 2020, sobretudo por ter abalado o campo das esquerdas, que parecem ter fugido do controle do PT e poderão encontrar novo alinhamento. O PSOL tem tudo para emergir como vetor principal desse realinhamento, deslocando dramaticamente o PT. Poderá fazer isso de modo novo, sem repetir o hegemonismo petista. O partido, porém, ainda é pequeno, dependente da tese da língua afiada e caminha longe da chamada “responsabilidade fiscal”, problemas que evidentemente podem ser corrigidos. O difícil mesmo será se adaptar à nova legislação eleitoral, com sua exigente cláusula de barreira.
O campo da esquerda dita “progressista” terá de ser reconfigurado. Fortes, nele, permanecem o PT, o PDT e o PSB, sendo que estes dois últimos infletem bastante para a centro-esquerda, onde dialogam com alas do PSDB. São fortes porque têm boas bancadas no Congresso e poderão enfrentar com mais sucesso as urnas de 2022, onde a cláusula de desempenho será crucial. A Rede é uma incógnita. O Cidadania venceu em 108 cidades, o que não é pouco. Os partidos de esquerda “pura” (PCdoB, PCB, PCO, PSTU) tendem ao desaparecimento, à irrelevância ou à fusão.
O outro é o DEM, que ganhou 3 importantes prefeituras logo de cara (Salvador, Curitiba e Florianópolis) e marcou presença no segundo turno em outras oito cidades. Passou de 266 para 459 prefeituras. Seu desempenho está sendo visto, pelos analistas, como uma demonstração de força do centro democrático, o que ainda terá de ser mais bem avaliado. Mas é inegável que o DEM deu um sinal importante para o jogo político nacional, aumentando seu cacife como articulador da desejada união de forças democráticas para 2022.
É preciso ir além dos partidos para decodificar os sinais emitidos pelas urnas. As máquinas não parecem ter pesado tanto, o eleitor não se deixou arrastar por legendas, mas por nomes. Deixou-se atrair por caras novas, mas não perdeu de vista as caras velhas. Foi pragmático, digamos que com algumas inclinações ao centro e à esquerda.
Tivesse havido mais diálogo dentro de cada campo político (esquerda, centro-esquerda, direita, centro-direita), a oferta teria sido muito mais rica e as cidades teriam recebido melhor tratamento programático. Houve alguma canibalização interna que roubou força de candidaturas com potencial. Em alguns caso haverá correções de rotas, como em SP; em outras, a oportunidade foi mesmo perdida, como no Rio de Janeiro.
Abriu-se nova temporada na política nacional. Os protagonistas ainda se repetem, em parte, mas os alinhamentos são outros e as possibilidades ficaram ampliadas. Ainda é cedo para dizer que aumentaram as chances de que as grandes disputas abertas para a democracia ganhem mais espaço do que as lutas intestinas voltadas exclusivamente para a autoafirmação. Mas as cores estão diferentes e o deslocamento de forças registrado até agora deixa o cenário mais otimista.
Motivos para comemorar
A pandemia não impediu a realização das eleições de 2020. Foi um marco para a democracia brasileira, tão maltratada ultimamente. Em ano tão atípico e cruel, algo para comemorar.
Não impediu, mas interferiu: somente em São Paulo, deixaram de votar 30% dos eleitores aptos. Com brancos e nulos, o número subiu para 40%: 3,6 milhões de votos. Foi mais ou menos assim também no Rio de Janeiro. Alta abstenção, efeito Covid.
Como sempre, a disputa foi aguda nas capitais, onde os temas locais prevaleceram sem que a política nacional deixasse de ressoar. Novas polos ganharam destaque, deslocando o embate PT x PSDB. Na corrida paulistana, todos bateram em Bruno Covas e tentaram associá-lo ao governador João Dória. O PT minguou, em benefício do candidato do PSOL, Guilherme Boulos. O quadro ficou diferente.
O bolsonarismo procurou sobreviver girando em torno de um “anticomunismo” estapafúrdio, que não adere aos fatos da vida. Nas capitais, o eleitor não se dispôs a apoiar candidatos vinculados a Bolsonaro. Em São Paulo, a aposta em Russomano foi um fiasco. Assim também no Rio, com Crivella. Os bolsonaristas perderam o ímpeto de 2018, perturbados pela charlatanice errática do presidente.
Despontaram caras novas: Manuela D’Avila em Porto Alegre, Boulos, Marina Helou e Arthur do Val em São Paulo, João Campos e Marilia Arraes no Recife. Sinal de que pode estar amadurecendo uma nova geração política. Entre os candidatos a vereador, muita disposição renovadora. O fim das coligações para as Câmaras Municipais fez os partidos mostrarem a cara, mas não ajudou a unificá-los. Os velhos caciques da política mal apareceram.
Nas grandes cidades, a disputa foi para saber quem irá ao segundo turno. Falou-se a língua das cidades: mobilidade, transporte, saneamento, enchentes, habitação, lixo. Os debates entre os candidatos foram pobres. Pouca atenção foi dada ao problema ambiental, à saúde pública e à batalha contra o COVID-19, temas que dramatizarão a pauta dos próximos gestores. A omissão evidenciou o despreparo dos candidatos e as incertezas que cercam a evolução do vírus e as perspectivas de vacinação.
Mesmo assim, houve motivos para comemorar.