O difícil equilíbrio entre blocos e imperialismos

Marina Venediktova. OST, 2021.
Marina Venediktova. OST, 2021.
No atual cenário internacional, um país como o Brasil precisa se movimentar com largueza de visão e flexibilidade. Sua política externa está obrigada a dialogar com todos, sem inflexões atabalhoadas ou preferências ideológicas.

No Brasil e em muitas partes do mundo, a esquerda atravessou o século XX combatendo o imperialismo norte-americano. Fez isso por razões histórico-políticas e movida por variadas elucubrações ideológicas. Motivos havia: a afirmação dos EUA como superpotência foi agressiva e nem sempre respeitou o princípio da autodeterminação dos povos. Foram muitas intervenções, muitos golpes patrocinados, muita pressão sobre políticos e partidos reformadores. O antiamericanismo ganhou alento a partir daí.

Depois da Segunda Guerra Mundial, as pretensões imperialistas dos EUA sofreram a concorrência de um segundo tipo de imperialismo, o soviético. Baseado na força política e econômica da Rússia, de seu desempenho militar contra o nazismo e nos influxos da revolução de 1917, constituiu-se um “império de esquerda” assentado sobre diversos Estados nacionais do Leste europeu: a URSS.

O fim do socialismo soviético no início dos anos 1990 coincidiu com o ingresso do capitalismo em uma fase de acumulação expandida, globalização e inovação tecnológica acelerada. Os EUA passaram a ser a única superpotência em condições de se impor hegemonicamente. A estrutura e as práticas dos imperialismos se alteraram. Pelas margens do sistema, porém, o dragão chinês cresceu com um capitalismo desenfreado e apetitoso dirigido por um Estado autoritário nominalmente comunista. Avançando sobre mercados periféricos nas Américas e na África, a China tornou-se a segunda potência econômica mundial. A Rússia, encolhida e sem propulsão econômica, fechou-se no Leste Europeu, hegemonizando as antigas repúblicas saídas da União Soviética.

A anexação da Crimeia em 2014 e a invasão da Ucrânia no início de 2022 integram esse cenário, que representa a afirmação do imperialismo regional russo, sob o comando de Putin.

Blocos e imperialismos de novo tipo passaram a se confrontar; a tensão se tornou onipresente. A agenda internacional, ao mesmo tempo, incorporou novos temas (meio ambiente, clima, sustentabilidade, identidades culturais, segurança) e ganhou extraordinária complexidade. O imperialismo chinês e o imperialismo regional russo, contrapondo-se ao imperialismo norte-americano e à União Europeia, redesenharam a geopolítica internacional.

Com a guerra desencadeada pela Rússia, os imperialismos se agitaram, disputando espaços e influência. O apoio ocidental à Zelensky visa não só defender a integridade territorial da Ucrânia, mas também refrear as pretensões expansionistas russas e aumentar a influência dos valores da democracia liberal. A aliança sino-russa, por sua vez, busca erguer um muro do qual seja possível torpedear as potências ocidentais. De qualquer ângulo que se queira observar a situação, vê-se a dificuldade de encerrar o conflito, que afeta antes de tudo a Ucrânia, respinga na Rússia e prejudica o comércio mundial na área de alimentos, fertilizantes e energia. É uma catástrofe localizada que assume envergadura global.

Aparentemente distante do conflito, em que pese o apoio à Rússia, a China segue em ascensão. Já não mais se contrapõe ideologicamente ao Ocidente. Seu comunismo peculiar não pode ser apresentado como opção ao capitalismo. A contraposição é econômica, comercial, geopolítica e tecnológica. A China luta por influência e pelos próprios interesses, não propriamente pela organização de um sistema internacional assentado sobre princípios compartilhados.

Por isso, quando Lula diz que nada impedirá o fortalecimento das relações do Brasil com a China, ele não leva em consideração o risco de estar se entregando à volúpia chinesa. Não mede cuidadosamente a distância que há entre a China grande potência e o Brasil potência regional em busca de um lugar ao sol. O risco, em suma, é trocar um imperialismo por outro. Os acordos assinados com os chineses são positivos, envolveram energias renováveis, indústria automotiva, agronegócio, tecnologias de informação e infraestrutura. Terminaram, porém, por ser ofuscados pelos posicionamentos do presidente brasileiro.

Para um país como o Brasil – cuja força repousa no mercado consumidor, na agropecuária, no território e no bioma privilegiado –, o cenário internacional é desafiador. Aliar-se aos EUA contra a China é tão complicado quanto aliar-se com a China em nome da multipolaridade. Não pode virar as costas para a Comunidade Europeia, nem deixar de procurar exercer liderança na América Latina. Precisa se posicionar deixando clara sua filiação aos princípios da autodeterminação, do diálogo e da soberania, condenando com clareza as agressões. Deixar de repudiar a guerra russa contra a Ucrânia para agradar a Putin e aos chineses não faz jus às tradições brasileiras, nem melhora a imagem do País.

Falar hoje em multipolaridade não é um sinal de progressismo, até mesmo por ser uma bandeira desfraldada por diversos regimes despóticos, que empregam o argumento para atacar a democracia em suas próprias sociedades e afrontar a soberania de outras nações.

O Brasil precisa se movimentar com largueza de visão e flexibilidade. Sua política externa está obrigada a dialogar com todos, sem inflexões atabalhoadas ou preferências ideológicas. Declarações precipitadas e equivocadas, como as feitas por Lula durante viagem à China e aos Emirados Árabes Unidos – quando, entre outras coisas, fez falsas simetrias entre Rússia e Ucrânia e disse que os EUA e a Europa “estimulam a guerra ao ceder armas para a Ucrânia” –, causam estragos desnecessários, forçando a diplomacia brasileira a uma frenética redução de danos. O próprio presidente foi forçado a se retratar dias depois, quando passou a dizer que seu governo “condena a violação da integridade territorial da Ucrânia” mas defende “uma solução política negociada para o conflito”.

Lula busca legitimar-se pela política externa, para com isso compensar as dificuldades que enfrenta na política interna. Deseja ser visto como articulador de um “grupo de países” para negociar a paz. A ideia funciona como retórica mas não está propriamente ao alcance do Brasil, cujo poderio como Estado é bastante limitado. Falando sem pesar as palavras, Lula não contribuiu para dar credibilidade à proposta de ser um mediador neutro do conflito. Como escreveu Ricardo Kotscho, “quem vai se sentar à mesa com Lula e qual é a sua proposta concreta para alcançar o cessar-fogo? Até agora, clamando no deserto, ele corre o risco de ficar falando sozinho”.

Uma boa política externa é uma construção delicada. Exige argúcia, equilíbrio, diálogo e capacidade de persuasão.

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