Chegar ao final de 2022 com um governo eleito em nome da democracia foi a melhor notícia do ano.
O pior foi neutralizado, em que pese a persistência da movimentação golpista. A balbúrdia e as ameaças seguem o enredo conhecido: urnas eletrônicas são manipuladas, as instituições do Estado são suspeitas, a República deve ser confrontada, o Brasil não é “vermelho”. O que importa é contestar o “sistema”, insuflar a população e disseminar mentiras.
O golpismo bolsonarista, porém, não é o dado principal da transição em curso. Há dilemas e dificuldades na formação do novo governo, que precisa introduzir novos quadros e novas ideias na gestão pública. Não pode repetir experiências passadas, que lhe roubarão clareza e envergadura. O Lula de 2003 não serve como molde para o Lula de 2023.
O novo governo fixou-se na recomposição orçamentária. Com o fim das “emendas do relator” deliberado pelo STF e a retirada da Bolsa Família do teto de gastos, a questão passou a ser obter maior folga fiscal. Para tanto, foi preciso compensar os parlamentares: o teto foi aumentado em 145 bilhões, mas valerá somente por um ano, e as verbas remanescentes do finado “orçamento secreto” serão divididas entre o Executivo e o Legislativo. Os parlamentares continuarão a encaminhar emendas individuais, de bancada e de comissão ao governo, que serão impositivas. O Centrão, de algum modo, se acomodou no governo futuro. O Legislativo se fortaleceu como poder sem que se tenha reduzido o poder do Executivo. Como, aliás, deve ocorrer em toda democracia.
Como não se conhecem as diretrizes do novo governo, não se sabe o que será feito com o bônus orçamentário. Se não for bem utilizado, agravará a crise fiscal e não gerará resultado social expressivo. Isso obrigará o governo a caprichar na qualidade do gasto e a cortar despesas para viabilizar os programas sociais. A pergunta é crucial: como gastar menos?
As decisões do Supremo ajudaram Lula, mas abriram uma nova frente de atrito com o Legislativo. Pode ser que o fogo não arda em excesso, mas a situação de crise entre os Poderes está posta na mesa.
Lula foi eleito por diversos partidos. O apoio recebido teve importante peso político e simbólico. No plano discursivo, Lula tem repetido o mantra de que o seu “não será um governo do PT”. Na prática, porém, as coisas não têm sido assim. A “Frente Ampla” está suspensa no ar, instabilizada por setores petistas e pelas alas fisiológicas do Congresso. O PT não costuma ceder em termos de protagonismo. Não se habituou a conviver em pé de igualdade com democratas e reformadores de outras correntes. Exigiu e obteve os ministérios mais estratégicos. Mas não se mostra atento ao fato de que seu governo precisa oferecer espaço para as forças que ajudaram Lula a se eleger.
Um governo minoritário no Congresso precisa negociar para aprovar suas propostas. O melhor modo de fazer isso seria celebrar uma coalizão democrática e dar a ela caráter político substantivo, ou seja, um programa unificador. Era o que se imaginava, dadas as circunstâncias da vitória eleitoral. Um governo plural facilitaria a despolarização e a introdução de reformas progressistas. Não parece ter sido a opção de Lula.
O novo governo escolheu compor um núcleo ministerial de confiança irrestrita para, a partir dele, negociar com o Congresso. Deu-se algum espaço para a diversidade de gênero e raça, mas não tanto para novas ideias. Lula ainda não definiu os 37 ministros com que governará. O fato de Simone Tebet e Marina Silva terem ficado para o final da lista indica que há muita poeira no ar. Sem elas, o governo nascerá torto. Com elas mal encaixadas, ganhará pouco.
A estrutura ministerial desenhada tem cargos e salários elevados. Pode acomodar diversos pleitos políticos e saciar a fome de políticos, sindicalistas, militantes partidários, afilhados. Seu gigantismo, porém, pressionará os gastos, terá custos de coordenação e poderá causar perda de qualidade gerencial e de controle da agenda. Se se abrir demais ao fisiologismo, o governo terá de fazer concessões e correr o risco de comprometer seu proclamado republicanismo. Ficará tentado a estourar os cofres do Estado e a costear a institucionalidade.
O governo futuro precisa ser novo: ter outras caras, compreender melhor o País e o mundo, inventar políticas criativas, inovar na gestão pública. Está comprometido a olhar para os pobres, mas não pode tirar os olhos da realidade fiscal do País. Se falhar no primeiro compromisso, perderá apoios. Se procrastinar no segundo, entrará em atrito com a elite econômica e terá maior dificuldade para financiar o gasto público. “Colocar os pobres no Orçamento e os ricos no Imposto de Renda” é uma mensagem que açula e excita, mas que não leva a lugar nenhum, pois repete o que toda boa política tributária almeja.
Por tudo isso, o melhor e o correto é torcer pelo sucesso de Lula. Seu fracasso aprofundará os problemas do País e poderá trazer de volta nossos piores pesadelos.
Boas festas e um feliz ano novo a todos.
Publicado em O Estado de S. Paulo, 24/12/2022, p. A5.
saudações, marco.
“Um governo minoritário no Congresso precisa negociar para aprovar suas propostas (…) celebrar uma coalizão democrática e dar a ela caráter político substantivo, ou seja, um programa unificador. (…) Não parece ter sido a opção de Lula.”
eu torço pelo novo governo, apesar do número exorbitante, me parece, de ministérios – que, eu acho, tem mais caráter eleitoral do que programático. o que mal e mal tento dizer é que precisariamos, por exemplo, não de Nísia Trindade no ministério da saúde, mas de um ministro da saúde capaz de dialogar com Nísia continuando à frente da Fiocruz.
saúde e paz, marco.