Há um mal-entendido circulando por aí. Ele atende pelo nome de “marxismo-gramsciano” e seria responsável por uma espécie de obnubilação mental dos professores universitários brasileiros, especialmente nas Humanidades.
Depois de uma longa temporada de combate aos marxistas, agora o alvo são os gramscianos, que também são marxistas. Não se trata, na verdade, de um ataque novo. Também não se compara com a caça às bruxas do período ditatorial pós-64 ou com o anticomunismo tradicional. Não expressa uma maré montante de perseguição ou amordaçamento dos intelectuais que se orientam pelo pensamento crítico. O mal-entendido é parte da luta ideológica dos dias correntes, nos quais bater na esquerda virou o esporte favorito de muita gente. É parte, também, da particular competição que invadiu as universidades brasileiras, nas quais o corpo docente por um lado se polarizou, e por outro foi instado a ser mais “produtivo” e a brigar por mais prestígio e projeção.
Nesse ambiente, há um tanto de ressentimento, frustração e mágoa servindo de base para a oposição ao marxismo e a Gramsci, como se eles fossem responsáveis pelos problemas dos cursos ou pelos tropeços e dificuldades inerentes à carreira docente.
A descoberta do perigo que as ideias de Gramsci representariam para os jovens brasileiros circula impulsionada por um regressismo barulhento, que simplifica ao extremo as complexas posições teóricas do pensador italiano e argumenta que elas seriam a porta de entrada para a generalização de um “marxismo cultural” que, após ser reiteradamente inoculado na cabeça dos estudantes, levaria o país à deterioração moral e o prepararia para que a aceitação fanatizada do poder total por parte da esquerda. Nas suas formulações mais caricatas, não passa de non sense. Os regressistas são uma ala agressiva e de baixo nível. Deles se diferenciam outras posições, que se preocupam com o consideram ser um “aparelhamento” dos departamentos pelo pessoal de esquerda, que seria majoritariamente marxista.
É um equívoco. As faculdades de Humanas têm seus problemas, mas entre eles não está o predomínio de marxistas.
As faces do equívoco
O mal-entendido tem várias faces.
Ele supõe que há uma única esquerda, por exemplo, que estaria submetida ao marxismo e a Gramsci. Ignora que há uma esquerda autoritária, uma esquerda democrática, uma esquerda laica e outra religiosa, uma esquerda marxista e uma esquerda distante do marxismo, situação que hoje certamente se expandiu muito. Afinal, vive-se no mundo sob a sensação de que a contraposição esquerda versus direita perdeu o sentido, o que é uma conclusão apressada, para dizer o mínimo. Muita gente pensa assim e há que se respeitar seus argumentos, que invariavelmente partem da constatação de que há um esgotamento daquilo que possibilitou a afirmação de uma identidade de esquerda, que teria ficado embaralhada pelos novos termos do jogo social sob o capitalismo globalizado e tecnológico.
Seja como for, não faz sentido pressupor que a esquerda seja toda ela dominada pelo marxismo ou pelas ideias de Gramsci. Os marxistas têm reduzido acesso ao mundo da política e da cultura. Os partidos mais fortes da esquerda – como o Labour na Inglaterra, os socialistas na França e na Alemanha – não mantêm relações íntimas com as ideias de Marx. No Brasil, nem sequer o PT pode ser tido como partido marxista, ou comunista. Ser de esquerda ou anticapitalista não significa ser marxista, embora ser marxista signifique ser de esquerda.
Fraco na política prática, o marxismo continua vivo como filosofia e visão do mundo, ainda que algumas de suas teses tenham sido questionadas na batalha de ideias e desmentidas pela realidade do capitalismo globalizado. É uma fonte inesgotável de insights e um precioso guia para a formação intelectual. Desprezá-lo é como desprezar as grandes contribuições dos liberais Locke, Adam Smith, Rousseau, Montesquieu, Tocqueville e Weber, entre tantos outros. É sinal de mediocridade intelectual, um desvio de conduta que se oculta sob o pretexto de defender a liberdade de pensamento e garantir que a “ciência” se sobreponha à “ideologia”.
Em 2018, o mundo do pensamento homenageia os 200 anos de Karl Marx. São inúmeros eventos, debates, publicações, seminários, que atestam o vigor das ideias associadas ao filósofo alemão e comprovam sua capacidade de permanecer dialogando com as sociedades contemporâneas. É um reconhecimento da importância que tem o marxismo para a compreensão dos mecanismos de reprodução do capitalismo e para a organização de uma agenda de reformas democráticas e igualitaristas.
Gramsci, por sua vez, é um marxista original, que tem sido lido e estudado por intelectuais como Norberto Bobbio, na Itália, e Oliveiros S. Ferreira, no Brasil, que não eram marxistas. Sua força pode ser medida tanto pelo número de línguas para as quais seus Cadernos e escritos foram traduzidos, quanto pela influência crescente que tem na Sociologia, na Antropologia, na Ciência Política, na Pedagogia, nos estudos internacionais. O “gramscismo” representou, na história das ideias, uma atualização do marxismo, que passou a dialogar de forma livre e criativa com as tendências que nasciam do capitalismo monopolista e da organização da sociedade de massas nas primeiras décadas do século XX. Gramsci era marxista, mas não era dogmático e transitou à vontade entre as correntes filosóficas do seu tempo. O que os críticos de hoje chamam de “marxismo gramsciano”, ou de “marxismo cultural”, tem pouquíssimo a ver com Marx e com Gramsci. A rigor, nem sequer existe.
Ideias teóricas e postura intelectual
O marxismo não predomina na universidade, nem mesmo nas Humanidades. Nunca predominou, sempre foi sobrepujado por expressões variadas do liberalismo e de filosofias distantes de Marx. O que existe em várias faculdades de Humanas é uma exacerbação do espírito crítico e muita combatividade, que nem sempre consegue se traduzir em posicionamentos políticos claros ou em engajamentos práticos. O “anticapitalismo de cátedra” é uma figura bem conhecida nas universidades, configurando um estado de espírito mais de rebeldia e contestação que de luta política ou partidária propriamente dita. Na maioria dos casos, os professores têm agendas de pesquisas que pouca relação mantêm com a agenda política do país.
Os marxistas que trabalham nas universidades formam uma minoria, ainda que muitos pesquisadores façam uso das categorias teóricas de Marx. Você pode usar Marx sem ser marxista, do mesmo modo que pode usar Rousseau ou Locke sem ser liberal. É o que se espera dos bons intelectuais, aliás. Pode-se fazer bom uso das ideias marxistas, gramscianas ou liberais, assim como tratá-las de maneira tosca e dogmática. Nesse último caso, a responsabilidade é da formação e da postura intelectual de quem se relaciona com as ideias, não das ideias propriamente ditas. Sem separar uma coisa da outra, não há como examinar a questão com seriedade e isenção.
Mesmo nas Ciências Sociais não há “hegemonia” marxista ou gramsciana. Muito ao contrário. Se existem bloqueios seletivos nos concursos de acesso à carreira docente, por exemplo, eles não se devem à filiação filosófica ou ideológica de quem quer que seja. Podem ser mais bem explicados pelo teor mesmo da concorrência por posições acadêmicas, ideologias à parte. Da mesma maneira, um curso acadêmico pode ser bom ou mau, ter maior ou menor qualidade, independente da filiação teórica ou política do professor. Há disciplinas espetaculares ministradas por professores marxistas e outras igualmente espetaculares ministradas por liberais. Atestados ideológicos ou filiações filosóficas não são garantia de nada. O dogmatismo e o fechamento de perspectivas podem frequentar qualquer campo político ou ideológico.
Não é honesto atribuir ao “marxismo gramsciano” eventuais seletividades em concursos, na escolha de temas ou na defesa de certas teses políticas. O mundo é bem mais complicado do que isso.
O mal-entendido ignora deliberadamente todos esses fatos. Cria-se um fantasma e atribui-se a ele um conjunto de problemas cuja origem está em outros fatores. Seria muito fácil “consertar” as faculdades de Humanas – ou seja, resolver os problemas que nelas certamente existem — mediante a supressão de certas correntes teóricas. A bandeira da hegemonia “marxista-gramsciana” é falsa, mas acaba servindo para os que, inconscientemente ou sem intenção deliberada, pensam que deve haver algum tipo de “enquadramento” no ensino universitário.
O ataque a Gramsci e ao marxismo é ideológico, nada tem de científico. Pode ter boas intenções ao exigir que a honestidade intelectual, o pluralismo e a liberdade de pensamento prevaleçam sobre quaisquer outros critérios. Mas está integrada a uma visão distorcida da universidade, da cultura e da vida política, funcionando no mesmo diapasão da ideia de que é preciso combater “a esquerda” para que a felicidade retorne à Terra.
A formação de uma bola de neve alimentada por visões persecutórias dedicadas a “desmascarar” a esquerda prevê a configuração de uma legião de mentes orientadas por um pensamento único. Uma legião de pessoas sem vontade própria e sem autonomia. Algo que traz inúmeros problemas e nenhuma solução, além de rebaixar os jovens à condição de teleguiados, coisa que, de resto, não retrata a juventude atual.
Em seus “Apontamentos para uma introdução e um encaminhamento ao estudo da filosofia e da história da cultura”. (Cadernos do cárcere, vol. 1, pp. 93-94), Gramsci observou que, na verdade, “todos são filósofos” — porque todos pensam, formulam questões e buscam respostas. Logo na sequência acrescentou: “Ao constatar isso, chegamos ao seguinte problema: é preferível ‘pensar’ sem disto ter consciência crítica, de uma maneira desagregada e ocasional — isto é, ‘participar’ de uma concepção do mundo ‘imposta’ mecanicamente pelo ambiente exterior, ou seja, por um dos muitos grupos sociais nos quais todos estão automaticamente envolvidos desde sua entrada no mundo consciente –, ou é preferível elaborar a própria concepção do mundo de uma maneira consciente e crítica, ser o guia de si mesmo e não mais aceitar do exterior, passiva e servilmente, a marca da própria personalidade?”.
Uma citação como essa deveria ser suficiente para acalmar os espíritos antigramscianos.
Caro Marco, gostei muito do texto; consistente, fundamentado…como é seu habito!
Gostaria de assistir uma discussão seria entre estes “purificadores da universidade ” em sua cruzada anti -intelectual , para verificar o que leram de Marx, Gramsci e outros pensadores …
É assustadora e avassaladora esta fúria conservadora que tem nos atropelado nos últimos tempos…
Que bom que autores como você e muitos outros insistem no Debate Intelectual – e não panfletário/ideológico…
Abraço
A confusão é muito grande, Eloisa. Faz-se uma ligação que não tem muito sentido. Há na universidade hoje, nas Humanidades, muito mais “combatividade” do que marxismo. Nossos colegas formam uma espécie de linha de frente dos governos que não são do PT, e isso gera uma névoa que cega os que olham de fora. Só o debate intelectual prá limpar essa névoa. Mas a universidade, infelizmente, está mais fechada para isso do que seria conveniente. Muito obrigado pela leitura e pelo comentário. Abraço
caro Marco
Parabéns pelo texto. Muito bem escrito e bem argumentado . Do meu ponto de vista o problema não é de uma hegemonia ou de algum forma de doutrinação cega que os marxistas fariam. Mas sim, o problema é de um desiquilíbrio na formação dos ” cientistas sociais” . Quais são , onde estão os professores que estudam , dão aula, dialogam com pensadores liberais ou conservadores ? Há toda uma discussão que apresenta a sociologia como uma ciência conservadora. Autores como Robert A. Nisbet equivalem – com rigor acadêmico – Marx à Tocqueville; Durkheim á Herbert Spencer. ignoramos esta discussão. E quantos dos nossos colegas não criticam os conservadores sem nunca ter chegado perto de uma linha escrita por Edmund Burke? E por fim, prestamos muita atenção aos ” comentaristas ” ( do Marx e dos demais clássicos ) mas não damos tanta atenção assim ou ignoramos as ” leituras críticas ” que alguns intelectuais ( como Aron , Lilla ou que Roger Scruton) fazem do pensamento e de alguns intelectuais de esquerda. Tudo somado nossa formação fica comprometida e é fácil tratar a sociologia ou os marxistas como ” bode expiatório ” – já que não temos muitas ferramentas para nos defender diante de uma perigosa onda anti-intelectual. Abraços,
É verdade, Ariel, há muita coisa que deveria ser feita e não é. Depois de tanto, não sei como responder à pergunta de saber “onde estão os professores que dialogam com pensadores liberais ou conservadores”? Na minha experiência docente, isso era feito até com certa insistência. Mas a universidade se expandiu, os professores foram sendo formados por outras tradições e a ideologia foi invadindo a sala de aula. A crítica ao liberalismo precisa andar de braços dados com a crítica ao marxismo, ao conservadorismo, etc. Minha intenção no texto foi separar os problemas da formação oferecida pelas faculdades da questão marxista, para evitar justamente o que vc chamou de conversão dos marxistas em bode expiatório. Não há “hegemonia marxista”, mas pode haver rebaixamento do nível. Abraço
Recentemente, por ocasião dos 200 anos de Marx reli trechos dos comentários de Hannah Arendt sobre ele. Embora critica do marxismo, HA considerava Marx um pensador importante e sério, o que atesta seu respeito pela obra marxista. No mínimo, é o que se espera de intelectuais honestos e íntegros.
querido Cosmo, estamos afinadíssimos nesse ponto. A honestidade intelectual passa precisamente por aí. Obrigado pelo comentário. Abraço