Passada uma semana do encerramento das eleições municipais, quando ainda se faz o balanço dos recados das urnas, a agenda política ficou concentrada na possibilidade de reeleição dos presidentes da Câmara e do Senado. A questão, devidamente “judicializada”, foi resolvido pelos ministros togados do STF, que por 6 votos a 5 mantiveram a cláusula constitucional e afastaram de si o cálice do casuísmo. Bom para a legalidade democrática.
Abriu-se então, a todo vapor, as negociações congressuais para definir quem substituirá Rodrigo Maria e Davi Alcolumbre. Os candidatos já se puseram em campo e nos próximos dias muitos movimentos serão feitos. Na tela, será a hora de saber se o Poder Legislativo será presidido com distância maior ou menor do Poder Executivo.
Este foi o cenário que prevaleceu, importante mas não tão decisivo. Por sobre ele, e mesmo sobre a conclusão das análises eleitorais, afirmou-se questão mais grave, de claro caráter estratégico e enorme dramaticidade, dado que afeta diretamente a saúde da população e terminará por envolver tanto o Supremo quanto o Congresso, além dos governos estaduais e de seu relacionamento institucional com Brasília.
A vacina e a vacinação contra o COVID-19 ganharam plena visibilidade, como um grito de angústia coletiva e de esperança. Expuseram, à luz do dia, o despreparo nacional para enfrentar a pandemia, a covardia negacionista do governo, a falta de atitude do ministro da Saúde. Ao passo que muitos países desenvolvidos e em desenvolvimento cuidaram de comprar doses das vacinas já aprovadas (Pfizer e Moderna), o Brasil ficou a ver navios, pendurado na cegueira do ministério da Saúde e de seu ministro, que pouco faz além de obedecer passivamente ao presidente. O risco, agora, é que entremos em 2021 sem vacinas em tempo hábil para o conjunto da população. Há notícias, também, de que faltam insumos para a vacinação, como seringas, freezer e algodão. Ou seja, o básico.
Não há logística que possa resolver isso no curto prazo. O tempo perdido será um tempo de mais vidas perdidas. O cenário que se delineia é da adoção plena da descentralização (federativa?): cada estado da União resolve o problema do seu jeito e conforme suas possibilidades, ou apelando para os russos da Sputnik, ou adquirindo algumas doses da produção da Coronavac em produção no Instituto Butantã, ou mesmo buscando quem a tenha para vender no mercado internacional. Prefeitos e governadores passaram a pressionar o general Pazuello para que o ministério da Saúde faça alguma coisa.
O governador de São Paulo, João Doria, está atento a tudo isso. Ao mesmo tempo em que negocia politicamente o recurso de valor que detém, procura fazer o que se espera e batalha para começar a vacinação em 25 de janeiro, caso tudo seja aprovado pela ANVISA – o órgão regulador que se deixou capturar pelos conflitos políticos e hoje é dirigido por um serviçal de Bolsonaro..
O desenvolvimento de uma vacina contra a Covid-19 é uma batalha técnica e científica. O circuito organizado por cientistas de vários países conseguiu a proeza de produzir alguns imunizantes que estão a indicar alto grau de eficácia e segurança. Grandes farmacêuticas disputam entre si para ver quem venderá mais e melhor seus produtos, mas todas trabalham com critério e foco na saúde pública. Seguem parâmetros médicos rigorosos, como sempre ocorreu com toda tentativa de imunização. Dada a agressividade da pandemia, a pesquisa se acelerou extraordinariamente e tudo indica que no início do próximo ano haja boa oferta de vacinas confiáveis e eficientes.
O problema é que o mundo está contaminado por negacionistas, pessoas que recusam a ciência e desconfiam da medicina. No Brasil, o próprio governo federal se mostra hostil à imunização, seja porque rejeita a gravidade da doença, seja porque a associa a planos “imperialistas” da China, seja porque não aceita que a primazia pela “vacina nacional” seja de João Doria. Manipula a dimensão sanitária do problema, gerando com isso reações em cadeia de governadores estaduais e da opinião pública.
A politização das vacinas foi posta na mesa. Vergonhosamente. Ela é criminosa, porque afeta a saúde da população e dificulta ainda mais a imunização. Uma de suas faces mais trágicas diz respeito a definir se a vacinação será ou não “obrigatória”. Os negacionistas alegam que ninguém pode ser obrigado a tomar um remédio e não consideram que, numa pandemia, cada indivíduo se converte em um vetor de transmissão viral: a imunização de um beneficia a todos. As besteiras que vem sendo espalhadas nas redes – que vão da convicção de que as vacinas são ineficazes à afirmação de que agem para modificar a estrutura genética e o DNA das pessoas – fazem corar de vergonha qualquer bom estudante do ensino médio e qualquer cidadão de bom senso.
Com tamanha falta de coordenação, duas coisas poderão acontecer. Uma é a desmoralização do presidente da República. Outra, o relaxamento ainda maior da população quando souber da disponibilidade da vacina e achar que depois dela nenhum outro cuidado sanitário precisará ser tomado.
A disputa para saber qual vacina será mais eficaz – se a “chinesa” patrocinada pelo governador de São Paulo, se a que está sendo endossada pelo Ministério da Saúde e pelos organismos federais, se alguma outra que será comprada a toque de caixa – é mesquinha e patética. Ela expressa a falta que fazem um bom planejamento, o respeito aos especialistas, a valorização do SUS, a capacidade política de articulação e comunicação do governo federal.
Não temos nada disso no País. O despreparo governamental é acachapante, desastroso. O resultado é que a população não sabe para onde caminhar e a quem seguir, se haverá ou não vacinas disponíveis, se elas serão efetivamente distribuídas e disponibilizadas, se as informações em circulação são ou não confiáveis.
Menos mal que São Paulo parece disposto a seguir em frente, convencido da eficácia e da segurança da vacina “chinesa”.
Pesquisadores do mundo todo, incluídos os brasileiros, têm insistido na ideia de que não há vacinas “nacionais”, mas vacinas que funcionam. Quanto mais variantes delas existirem, melhor. É uma mensagem importante, que, no entanto, não chega à população brasileira com a velocidade e o rigor que seriam necessários.