A essa altura, a constatação já foi feita por todos os observadores. Resta agora buscar as razões, entender as determinações.
Independente do que vier a acontecer no segundo turno, o Brasil infletiu para a direita nas eleições de 2018. Não necessariamente para a extrema-direita, mas seguramente para um polo hostil à esquerda e problematizador da democracia política tal como a temos construído desde o final dos anos 1980.
Foi um vendaval, que varreu o País de cima a baixo, desidratou o centro e empurrou o PT para seu nicho mais tradicional, o Nordeste, onde se manteve firme e forte, mas numa dimensão incômoda para um partido que se quer de esquerda. O eleitor petista da região não é ideológico, não é de esquerda nem tipicamente “democrático e racional”: orienta-se pelos hábitos do coração, pelo agradecimento, eventualmente pelo pragmatismo e pela defesa dos próprios interesses e fantasias. Lula é seu farol, não o PT. O resto do apoio vem por força da ação dos políticos tradicionais, dos grandes caciques e das famílias poderosas, com suas coligações.
A dimensão do “agradecimento” não qualifica uma postulação de esquerda, já que incentiva uma postura de “assistencialismo”. Mas não é verdade que o nordestino é pura paixão e o resto é razão. Como poderia haver “razão democrática”, por exemplo, em um estado como São Paulo, que elege uma bancada de deputados federais liderada por gente que não se posiciona democraticamente? Ou no voto raivoso que impulsionou Bolsonaro no Sul e Sudeste do País? O voto com raiva é uma estupidez, e com certeza é ainda mais primário do que o voto por agradecimento. A raiva tensiona e empobrece a democracia, ao passo que o agradecimento pode ser a base de uma postura dialógica.
O avanço do conservadorismo, mais à direita ou menos, foi expressivo não somente na disputa presidencial. Desenhou-se um novo Congresso, os alinhamentos nos estados foram alterados, inúmeros parlamentares tradicionais sofreram derrotas acachapantes, de Eunício de Oliveira e Romero Jucá a Dilma Rousseff e Eduardo Suplicy, sem falar em Cristovam Buarque e Roberto Requião. É como se um novo tempo estivesse sendo inaugurado. Teremos de esperar um pouco para ver se será isso mesmo.
Bolsonaro foi impulsionado por um tipo de conservadorismo curioso: parte de seus votos veio de pessoas interessadas em “mudar o que está aí”. Houve votos ideológicos, de extrema-direita, fanatizados, evidentemente, mas não há como saber em que proporção. O grosso não foram votos “fascistas”. Parcela da votação obtida foi composta por pessoas que optaram por viver o paradoxo de mudar para experimentar uma conservação, que buscaram um tipo de “proteção” que deixou de ser oferecida nos últimos tempos: proteção contra a violência, contra a má qualidade dos serviços públicos, contra a indiferença governamental e os excessos das “narrativas”, contra a insegurança, contra o desemprego. O antipetismo foi o ingrediente que “racionalizou” o veto a práticas governamentais tidas como avessas ao bom governo, a repulsa ao descaso dos políticos e dos partidos.
Tratou-se de um conservadorismo de fundo moral, voltado para os costumes, tanto os que florescem na base da vida social (família, gênero, religiosidade, cultura) quanto os que se reproduzem no plano estatal, de onde se espalham pela sociedade. Ele se voltou, também, contra a prevalência e a retórica das pautas identitárias, vistas como produtoras de divisões e fraturas sociais.
A pregação bolsonariana valeu-se da efervescência de certas vertentes que agitaram os rios subterrâneos da sociedade. Soube perceber o efeito político-eleitoral delas e as manipulou com eficácia.
A repulsa aos políticos e ao modo usual de se fazer política foi a primeira. Traduziu-se em termos “antipolíticos”: desvalorização dos entendimentos e da negociação, dos debates públicos típicos da democracia, dos jogos parlamentares estendidos no tempo, do respeito às minorias e a seus procedimentos parlamentares.
O desejo de “renovação” foi a segunda vertente. Das práticas políticas e governamentais antes de tudo. Renovação da classe política, vista como amarrada a um universo político pouco “decisionista”, refratário à produção de políticas resolutivas. Renovação dos discursos políticos.
O repúdio à corrupção veio por extensão e em atendimento a uma pregação que contagiou o País nos últimos anos, ao menos desde os primeiros passos da Operação Lava-Jato. Aqui a metralhadora girou freneticamente.
O “antipetismo” foi a vertente que recebeu tratamento mais intenso, com direito a todo tipo de mentiras e manipulações. Foi assim em parte porque o PT esteve exposto na vitrine governamental durante a última década e meia, em parte porque o fracasso do governo Dilma calou fundo e produziu muitos estragos, em parte porque o PT não conseguiu se livrar de suas “narrativas” típicas, não fez qualquer autocrítica e optou por se separar dos ânimos de setores importantes da opinião pública.
A dinâmica da polarização “nós” contra “eles”, ora na versão esquerda vs. direita, ora como oposição democracia vs. autoritarismo, fechou o pacote, capturando eleitores que nenhuma aproximação tinham com o bolsonarismo.
É difícil imaginar que País iniciará o ano de 2019, seja quem for o vencedor do segundo turno.
Mas é fácil perceber o que o vendaval já produziu. O conservadorismo moral ganhou corpo. As redes ocuparam o espaço da TV. Os marqueteiros perderam força. Uma direita (extrema e moderada) adquiriu base popular, de massas, esgrimindo um discurso que, se conseguir ser mais bem elaborada, irá organizar todo um novo campo. As grandes organizações partidárias (PT, PSDB, MDB) atingiram o fundo do poço e não se sabe como e se voltarão à superfície. Uma nova classe política encontra-se em plena gestação.
O novo governo federal terá de conviver com uma sociedade em crispação e com um Congresso fragmentado como nunca antes nesse País.
O sistema político mostra-se esgotado, trocando de pele e de cultura.
Vença Bolsonaro ou vença Haddad, a situação não deverá ser fácil nem tranquila.