Há duas dimensões envolvidas na transição presidencial em curso no Brasil.
A primeira delas, mais visível e mais relevante em termos imediatos, se localiza na cúpula, no alto do sistema, onde se alojam articulações e negociações. Nela, tudo parece apontar para a formação de um governo politicamente amplo, integrado por representantes de diversos partidos. Afinal, a lógica da transição é magnética. O poder de atração de um novo governo é enorme. E os cálculos do momento indicam que irá se constituir uma ampla base de apoio a Lula. O joio e o trigo irão se misturar inevitavelmente e a arte política terá de se dedicar a fazer as necessárias separações e distinções.
Esse plano está atravessado por tensões e disputas de espaço, o que complicará as operações. Divergências de caráter programático surgirão, assim que forem estabelecidas as linhas mestras e as diretrizes principais do novo governo. Ações de apaziguamento e recomposição terão de ser empreendidas de modo recorrente.
Insatisfeitos sempre haverá. Uma equipe formada sobre uma base de centro-esquerda ampla, com inclinações pragmáticas para a direita fisiológica, não tem como trabalhar com a paz dos cemitérios. Alas à esquerda, por exemplo, tenderão a contrastar as derivações centristas. Poderão fazer isso de maneira mais “ideológica” (mais esquerdistas e fundamentalistas) ou mais “política” (mais interessada em espaços), mas em qualquer um dos casos trará uma dose adicional de antagonismo à transição. Partidos convidados a se agregar poderão vender mais caro ou mais barato o apoio que darão. E assim por diante.
Há um dado que pesa: a sociedade quer mudanças. Parece já ter intuído que elas não virão de uma só vez. Serão incrementais, com a exceção de algumas de caráter emergencial (fome, miséria, desmatamento, crise fiscal). A expectativa social é que se tenha um governo que escape da polarização que dominou a cena política nos últimos anos, abaixe a temperatura, atue com moderação e firmeza. Também há um entendimento generalizado de que as contas públicas necessitam de equilíbrio, o que comprime os gastos. Tudo isso terá de ser considerado pela equipe de transição. Se o novo governo se deixar levar por arroubos fundamentalistas, pelo protagonismo desse ou daquele partido, pela retórica inflamada do confronto e do ajuste de contas, em pouco tempo perderá a possibilidade de interagir positivamente com a sociedade.
Chega-se assim à segunda dimensão. A transição também terá de ocorrer no plano de baixo, ou seja, na sociedade. A questão, aqui, forma um feixe entrelaçado. Quais serão os passos do bolsonarismo a partir de agora? Como se comportarão os milhões de eleitores que o sufragaram nas urnas? Como convencer essa massa imponente de que é preciso virar a página, que há coisas mais importantes na vida do que conservadorismo de costumes, religião e família? Que o foco é reerguer o País, proteger os vulneráveis e blindar a democracia?
Essa dimensão aponta para uma transição longa, complexa, difícil. Para entrar em sintonia com a sociedade, os esforços governamentais para fazer uma boa gestão não serão suficientes, por melhores que sejam. Nesse terreno, a operação não se limita a articulações políticas e políticas sociais. Exige atuação político-cultural. Governos não podem tudo. E podem pouquíssimo se não contarem com boas “correias de transmissão” que os levem até o âmago da população, aos corações e mentes das pessoas.
A figura típica dessa mediação são os partidos políticos. Não quaisquer partidos. Pouco podem fazer os partidos sem bases ativas e organicidade associativa, sem “capilaridade social”, que atuam com os olhos no poder e nas eleições. O “partido-educador” é o personagem ideal. Mas ele hoje está em falta. Desapareceu no mundo inteiro.
No Brasil, em particular, os partidos estão estatalizados, giram em torno de governos e disputas eleitorais. Nem mesmo o PT pode se apresentar como estando dedicado à educação política da sociedade. Não dispomos, além do mais, de uma indústria cultural e de uma esfera pública especialmente ativas em sentido cívico, democrático, educacional.
Isso tudo pode significar que a equação final da transição – que governo teremos e o que ele entregará — permanecerá em aberto, sem resolução cabal, durante um bom tempo.