O suposto básico é que não se deve perder de vista a realidade, os fatos duros da vida, os processos objetivos, mas se deve sempre buscar interagir com eles de modo crítico, ou seja, aceitando-os como fatores e procurando modulá-los como base em alguma utopia razoável. Sem isso, o debate democrático escorrega e não se completa.
Ponto 1. Temos ou não um problema fiscal no Estado brasileiro? Independente de se buscar culpados ou responsáveis, há elementos que revelam dificuldades para a formação de fundos públicos sustentáveis, para o pagamento da dívida pública e para o financiamento da ação estatal? Não precisamos exagerar no diagnóstico, nem muito menos fazer agitação. Deveria bastar uma simples conclusão preliminar: sim, temos alguns problemas. Como têm sido enfrentados? Como seria razoável enfrentá-los? Tirando as soluções óbvias – cortar gastos, bloquear o crescimento da dívida, taxar fortunas e suspender isenções e privilégios –, que são óbvias mas dependem dramaticamente de correlação favorável de forças, o que tem sido proposto nos últimos tempos, além da recusa às propostas do governo Temer? Mesmo essa recusa tem sido oca, pouco propositiva, o que deixa desarmados os democratas. As perguntas a serem respondidas aqui, em termos políticos, são duas: (a) o que a correlação de forças e a estrutura do capitalismo atual permitem que se faça?; (b) o que seria uma política fiscal progressista factível? Daqui podemos derivar um formidável elenco de temas subjacentes, dentre os quais se destacam o combate ao uso patrimonial do Estado e à corrupção, o saneamento das finanças públicas, a retomada da capacidade estatal de investimento e a política econômica. A própria questão ética (central para a democracia dos nossos dias) deveria estar aqui associada.
Ponto 2. Há ou não problemas e gargalos na Previdência, seja quais forem os parâmetros para medi-los? São problemas contábeis ou estruturais, os alegados “rombos” são reais ou não passam de estratégia de atemorização dedicada a fazer passar com mais facilidade uma reforma em favor do capital? Podemos adotar como critério que o Brasil continue a gastar cerca de 12% do PIB para sustentar pessoas que, em tese, se retiraram do mercado de trabalho (muitas delas com 55 anos, ou algo assim)? Esse percentual está bem dimensionado, a estrutura tributária e a dinâmica econômica o autorizam? A Previdência é um modo de distribuir renda ou um recurso para proteger a velhice, os que não podem trabalhar e seus dependentes? Deve-se ou não pensar o sistema tendo em vista as alterações demográficas (o fim do “bônus demográfico”, o envelhecimento da população e a diminuição dos nascimentos) e a estrutura produtiva do capitalismo vigente, com seus incentivos aos pequenos negócios, à robotização, ao empreendedorismo e ao trabalho informal, que não são geradores de receitas previdenciárias? Que reforma seria admissível para que não se percam direitos e se conceba um sistema para o futuro?
Ponto 3. É justo e correto, para o mundo do trabalho e para as empresas (sobretudo as pequenas e médias), que se mantenha a legislação trabalhista como está, sem flexibilidade, seguindo a mesma cartilha de décadas atrás, num momento em que tudo está em reestruturação? Pode-se admitir como eficiente, para os trabalhadores, que o “negociado” prevaleça sobre o “legislado”? Que implicações isso teria: ajudaria a que se fortalecessem as representações sindicais ou levaria a que se esvaziassem os sindicatos e se os entregassem a dirigentes mais desqualificados? Como separar uma coisa da outra? A questão deveria ser discutida com os olhos no que já se tem de garantias ou com os olhos no futuro, nos “direitos futuros” e nos trabalhadores que não estão incluídos?
Ponto 4. Estamos felizes com o sistema de ensino que vigora no país? Os jovens estão sendo bem formados, os professores se sentem valorizados, há clareza sobre o que se deve ensinar, temos parâmetros curriculares consistentes, escolas convidativas tanto em termos espaciais e estéticos, quanto em termos tecnológicos e didático-pedagógicos? Uma “reforma do ensino médio”deve seguir quais critérios? Por que a abertura da grade curricular, de modo a torná-la mais opcional e mais flexível, não pode ser uma medida interessante? Se não for, o que se deve propor no lugar? Podemos nos dar ao luxo de ficar parados, sem experimentar, à espera de uma reforma que tenha a cara e as cores do que se considera perfeito?
Esses quatro pontos estão hoje no centro da agenda política do país. Sem que se responda a eles, os democratas não subservientes ao governo Temer ficarão sem sair do lugar. Não terão como contestar politicamente o governo, nem se organizar para apresentar uma candidatura que os represente em 2018 e que faça isso de uma perspectiva renovada, sem o ranço do passado e com firme disposição para projetar uma efetiva transição para um patamar superior.
Uma candidatura que os represente em 2018 não pode ser reduzida a um nome. Não depende tanto de nomes, que de resto nem sequer existem.
Uma candidatura para representar as posições democráticas só fará sentido se for um programa em ação.
Precisamos admitir que estamos atrasados. Não temos um campo reformista, social-democrático ou de esquerda bem constituído. Faltam-nos ideias básicas. A intelectualidade se encontra às voltas com as atribulações de sua vida profissional, fechada em si mesma, com raras exceções. E as elites (política, sindical, científica, do mundo da cultura) não se soltam das amarras que as aprisionam na indigência. São elites sem densidade cultural, alheias ao mundo, com pouca grandeza e pouca disposição ao “sacrifício”.
O Brasil atual está submetido a dinâmicas “passivas”, ou seja, sem projeto ou ação construtiva deliberada. Os fatos e os sistemas vão nos empurrando, engolindo as decisões. Estamos batendo no osso. O que poderia ser uma social-democracia vitoriosa se desfez na última década, com a conversão do PT a um partido como outro qualquer e com o esvaziamento ideológico e teórico do PSDB. À esquerda do PT, o caos se alimenta da submissão à cultura petista, com sua negação a “tudo o que está aí” e sua dramática incapacidade de dialogar com as forças políticas democráticas e ser uma força propositiva. Faltam atores, “elites” políticas e intelectuais com um mínimo de visão estatal e sólida cultura democrática.
Deveríamos conceder atenção especial e dedicada a isso, enquanto há tempo. A contestação das coisas sempre exige uma reflexão cuidadosa sobre elas. Sobretudo se a questão for articular saídas e buscar a unificação dos democratas mediante o adequado processamento das diferenças existentes entre eles.
Um programa reformador em ação conflui para aquilo que se costuma associar ao compromisso social-democrático autêntico, voltado para a distribuição da riqueza, a racionalização dos gastos públicos, a liberdade e os direitos sociais, com políticas públicas consistentes, de longo prazo, e forte suporte coletivo. Passa decisivamente pela educação política da cidadania, que por sua vez também depende da educação geral, de uma boa escolaridade. É uma perspectiva que supõe já termos ingressado em uma nova fase do capitalismo, assentada sobre formas de trabalho e produção tecnológicas, digitais, robotizadas, que abrirão as comportas para o surgimento de sistemas sociais e modos de vida inteiramente novos.
Não temos como evitar que essa dinâmica se imponha, mas temos como modulá-la. O quanto ela produzirá de “boa vida” e o quanto disseminará de miséria em escala planetária, com a multiplicação de deserdados e excluídos, é algo que não dá para prever, ainda que se possa cogitar. E não dá para prever porque o homem é um ser que responde ao seu ambiente e é da sua natureza encontrar soluções para os problemas com que se defronta.
Os humanos valem-se, para tanto, da política, da ciência, da arte, da filosofia, da literatura. Que continuam à disposição. Para serem usadas pelos políticos profissionais, mas também e sobretudo pelos cidadãos, que no fundo são quem decide os movimentos, as escolhas e a qualidade dos políticos.