Todo início de ano é a mesma tentação. Desejamos decifrar o futuro, projetar nos próximos 360 dias nossas expectativas e torcidas, nossos temores e preocupações. Não há como evitar, por mais realistas que sejamos.
Olhamos para frente e divisamos mais sombras do que luzes, porque, afinal, trata-se de história, processo que não se submete a controles e não pode ser programado. São homens e mulheres em movimento, fluxos incessantes, antagonismos e contradições que se chocam.
Falamos, quando muito, em possibilidades e probabilidades.
Vacinas e vacinação
Essa é uma área em que se misturam medos e esperanças. Mesmo quando não vemos os imunizantes como a eliminação cabal e definitiva do vírus, estamos convencidos de que eles são um passo gigantesco nessa direção. Milhões de vidas poderão ser poupadas, ainda que as precauções tenham de continuar.
Duas constatações. O governo não agiu até agora para viabilizar a vacinação. Não há cronograma, não se sabe de que vacinas o País irá dispor. A sensação é de que estamos no vácuo, numa zona de penumbra e incerteza. O negacionismo duro do bolsonarismo é agravado pelo negacionismo light, dissimulado, seguido por aqueles que lotaram praias e praças na comemoração do réveillon e por aqueles que relativizam essa conduta, alegando ser ela um momento de “desafogo” de gente que ralou o ano inteiro na quarentena e merece ter alguns momentos de diversão. É uma espécie de manicômio a céu aberto, com “narrativas” e performances. Seu emblema foram as férias do presidente no Guarujá, marcadas pela conduta grotesca daquele que deveria zelar pelo bom exemplo em um momento em que o vírus expande seu poder de contaminação no País. O presidente acredita que está a combater o “sistema”, quando na verdade faz um ataque à vida. De quebra, insufla sua galera de fanáticos, com uma fileira de conflitos artificiais. Fica em evidência, mas a cada dia mata um pouco mais a sociedade.
Duas possibilidades. O governo federal desperta para o problema e permite que o ministério da Saúde coordene a vacinação, agilizando-a ao máximo. É uma possibilidade que colide que os serviços prestados pelo governo até aqui, que foram, na verdade, um enorme desserviço. Parece ser da natureza do governo atual flertar com a desgraça. A equipe ministerial é péssima, o presidente circula como barata tonta sem tomar qualquer atitude a não ser proteger a família, promover aglomerações macabras e espalhar o vírus. Não temos governo, a rigor.
A segunda possibilidade, que dialoga com a primeira, é a vacinação ser empreendida a ferro e fogo pelos entes federativos subnacionais, secundados por clínicas particulares, que já começaram a falar em comprar lotes de vacinas para vender aos que puderem por elas pagar. É uma possibilidades que aprofundará a desigualdade social e que terá baixo impacto epidemiológico, além de sacramentar a injustiça em que vivemos. Dada a inação governamental, porém, ela não pode ser descartada.
Talvez fiquemos entre uma e outra em termos de probabilidade. A pressão social pela vacinação será a cada dia maior, mesmo que o governo siga negando o problema. Tenderá a reduzir os apoios ao presidente e, com isso, a tornar mais difícil a continuidade do governo no padrão em que se encontra. Como ele passou a depender dramaticamente do “centrão”, já se fala em reforma ministerial, que poderá trazer alguma melhoria pontual sem, no entanto, mudar o modo de ser do governo, que a essa altura parece cristalizado.
Não podemos, pois, jogar todas as fichas numa única casa.
A oposição democrática
Poderá ter papel decisivo, seja no processamento da vacinação, seja na contenção dos apetites autoritários e grosseiros do governo, podendo exercer alguma função em termos de correção de rota. Evento extremamente importante será a eleição para a presidência das duas casas legislativas, em especial a da Câmara. Antes de tudo, porque se o governo conseguir controlá-las, o caos atual tenderá a se prolongar e a sociedade civil perderá um aliado fundamental. Depois, porque os arranjos que se fazem em torno da candidatura do deputado Baleia Rossi (MDB-SP) antecipam em boa medida o que poderá ser feito em 2022: uma articulação centrista aberta para a esquerda, voltada tanto para a independência da Câmara quanto para a sedimentação de alianças de tipo programático, com uma inflexão progressista, o que fará com que o campo democrático se coloque como o grande ator de 2022.
Outra possibilidade passa pelo fracasso dessa articulação, seja pelo motivo que for. Nesse caso, com o governo mandando na Câmara, aos democratas só restará temer o pior. Culpas serão distribuídas, acusações de traição se acumularão e o clima ficará mais tóxico. Crescerá a probabilidade de que a oposição democrática não disponha de fôlego para virar a mesa em 2022.
Ao longo do ano novo, assistiremos a uma intensa movimentação no campo democrático. Tanto na área da centro-direita quanto na esquerda esforços terão de ser feitos para que se apaziguem os apetites e as ambições de seus integrantes. Há muitos caciques salivando, outros querendo se viabilizar, nomes em cogitação, enorme indefinição. De um lado, DEM, PSDB e MDB terão de se acertar e ver o que acontece com o PSD. De outro, PDT e PSB precisarão definir seu relacionamento com o PT e esse, em particular, terá de resolver todas as questões que, nos últimos anos, sacrificaram boa parte de seu prestígio e de seu poder de fogo.
A esquerda
Ainda que não esteja no melhor de suas forças e viva mergulhada em dúvidas existenciais e limitações, a esquerda precisa ser analisada com atenção no ano político que se abre. Realismo máximo: ela tem peso e agrega pessoas, desconsiderá-la é olhar o mundo de maneira torta. Mas a ótica realista também precisa ser praticada pela própria esquerda: ela precisa reconhecer que ainda lambe suas feridas, está se recompondo e disputando território. Não pode mais confiar em um Lula imbatível, pois as circunstâncias mudaram drasticamente. Sendo um político bastante pragmático, Lula deve saber disso e não parece razoável apostar que ele saia candidato em 2022, mesmo que seja inocentado na Justiça. Seu apoio a um nome petista puro-sangue ou a alguém externo ao PT também não garante bônus, pode mesmo ser um fator de ônus, como mostraram as eleições municipais de 2020. Muitos atritos podem ser antevistos aqui.
Caso a vontade de autonomia da esquerda prepondere e ela navegue em 2021 colidindo com a formação de um centro democrático progressista, teremos em 2022 duas possibilidades: ou a esquerda modera seu antagonismo, afirma-se no primeiro turno e converge no segundo para uma candidatura centrista, ou se radicaliza e passa para o segundo turno sem conseguir o apoio ativo do centrismo, todos sendo então derrotados pelo bolsonarismo.
2021 será, pois, um teste para o realinhamento político dos democratas e o reposicionamento das esquerdas. Será um ano para que uns e outras esclareçam suas pretensões e mostrem, aos brasileiros, como estão a pensar a vida, o que pretendem e o que propõem. Já passou a hora de uma política com “P” maiúsculo ser mais forte do que os cálculos rasteiros, o oposicionismo retórico e os protagonismos autorreferidos.