A nossa é uma época estranha. Todas as épocas talvez sejam assim: quem vive nelas sempre pode ter a sensação do inusitado, de algo que não se manifestou antes. Mas a nossa é paradoxal demais. Encanta e assusta. Confunde, perturba, excita. Parece vazia de esperança e otimismo, como se temêssemos o que nos aguarda à frente.
Há grandes margens de liberdade e autonomia. Podemos escolher como viver a vida. Mas não nos damos conta das orientações que, insidiosamente, valendo-se de algoritmos e estratégias mercadológicas, modulam e padronizam os comportamentos coletivos.
Misturam-se a isso a desinformação induzida e a atuação de líderes autoritários, que minam os valores democráticos e manipulam parcelas importantes da população. Há governantes que governam contra seu povo e outros que combatem o sistema eleitoral de seu próprio país, depois de terem dele se beneficiado.
Vivemos em redes. A cada dia, mais pessoas caem nelas. Redes são prisões ou estradas para a autonomia? Isolam-nos em bolhas e nos roubam do contato com o mundo exterior, alienando-nos? Ou são estratégias de sobrevivência, lugares de fuga de uma realidade sempre mais difícil de ser suportada e compreendida?
O que há de pernicioso e dispersivo nas redes pode ser contraposto ao que elas trazem de ativação de relacionamentos. Estar em redes é usufruir de contatos e oportunidades. É adquirir uma visibilidade que, bem dimensionada, nos retira da privacidade excessiva e da individualidade fechada. É poder trabalhar com maior agilidade e com menos deslocamentos. É poder interagir e dialogar.
O problema começa quando as redes trancam os indivíduos, os tornam dependentes delas, a ponto de romperem o contato com a realidade. Nesse ponto, as redes viram mecanismos de reforço da hiperpersonalização e do narcisismo. É ainda pior quando as redes se convertem em máquinas de compressão e modelagem de cabeças, o que ocorre quando “sistemas robóticos” são postos em ação para produzir fatos ou contaminar ambientes virtuais. A desinformação é veneno puro. Intoxica consciências e perturba a formação de decisões livres e críticas.
Hoje temos de responder a perguntas incômodas. Desejamos continuar a viver de modo tecnológico, digital, em redes? Prosseguiremos aceitando o domínio do mercado? Continuaremos a assistir sem reação à destruição do planeta, ao aquecimento global, à crise climática? Como estamos assimilando as postulações identitárias e as lutas por reconhecimento? Temos à disposição um modelo alternativo de “boa vida” e “boa sociedade”? A democracia institucionalizada está nos ajudando? Estamos cooperando o suficiente?
As reflexões do pensador francês Edgar Morin nos ajudam a pensar. Morin acaba de completar 101 anos de idade. Uma bela idade para uma vida generosa e produtiva.
Em seu A via. Para o futuro da humanidade, de 2011, Morin reiterou a necessidade de pensarmos o mundo como “Unitas Multiplex”, unidade da multiplicidade e da diversidade humana. Seu universalismo concreto o levou a analisar a Terra-Pátria como uma “nave espacial” impulsionada por motores incontroláveis – a ciência, a técnica, a economia, o lucro –, que podem nos levar para futuros não desejáveis. Uma mudança de rota é nossa boia de salvação.
É onde estamos hoje: mudar ou sofrer, quem sabe perecer. Uma “política de civilização”, que também seja uma política de civilidade, é o caminho para resistirmos às catástrofes anunciadas, a corrosão da democracia, a violência, as epidemias virais, as guerras, a desigualdade, a fome, a emergência climática, o desemprego, as manifestações de ódio, as polarizações improdutivas. O descalabro é tão grande que parece faltar frestas por onde escapar.
Morin tem sido um crítico público da vida que se esparrama sem controle, um combatente contra a “crueldade do mundo”. Em 2020, apontou erros e acertos surgidos no modo como se enfrentou a pandemia. Agora, em 2022, repudiou a invasão russa da Ucrânia, propondo que se ponha em marcha uma “guerra contra a guerra”.
Sua hipótese é de que continuamos “à beira de um abismo, mergulhados na total incerteza do amanhã”. Enfrentamos problemas trágicos e perturbadores, com “múltiplas implicações entrelaçadas e outras tantas totalmente desconhecidas”. Mobilizar a indignação é preciso.
Morin nos ensina a “não ignorar as nossas ignorâncias” e a não perder a paixão pela diversidade e a esperança. Ele fala para os povos do mundo e, portanto, também fala conosco, brasileiros. Por aqui, neste país tão carregado de possibilidades, a crise é aguda. Somos afetados pelas “policrises” apontadas por Morin, mas temos a nossa versão particular delas, cujo agente principal é o próprio presidente da República. Estamos sem governo, há estímulos para a degeneração da convivência, problemas se amontoam sem solução.
Um bom momento para refletirmos sobre nossas opções, sobre decisões equivocadas, sobre arranjos políticos perversos. Um bom momento para dialogarmos com Edgar Morin.
Publicado em O Estado de S. Paulo, 23/07/2022., p. A8.