Reinventar, articular, reconstruir

Lygia Pape, gravura.
Lygia Pape, gravura.
Fala-se em ‘terceira via’ para 2022 como se fosse mágica, mas pouco se faz por ela. O País precisa de perspectivas inovadoras

O melhor seria passar um pano em tudo e começar de novo.

Só que é impossível. Sociedades, Estados, sistemas políticos, instituições, acumulam pó e sujeira, mas não podem ser limpos com panos e detergentes comuns. Requerem recursos e ingredientes que não se encontram no mercado. E que, hoje, nesse Brasil que está deixando de ser tão brasileiro, fazem uma falta lancinante, que machuca e faz sofrer.

Falta-nos, antes de tudo, uma ideia de sociedade futura. Como queremos viver, para além da obviedade de que queremos todos ser felizes e bem tratados, ter um Estado eficiente e instituições que se façam respeitar e regulamentem a vida? Queremos justiça e igualdade (entre gêneros, etnias, orientações sexuais e classes), mas não há pistas de como isso poderá ser alcançado. Reivindicações e desejos saltam na vida cotidiana, mas os atores políticos não sabem como agarrá-los.

Com qual economia, para começo de conversa? Uma pujante, consciente de suas possibilidades, disposta a incluir o País no sistema de intercâmbios internacionais, capaz de gerar renda e empregos, de adotar a sustentabilidade como critério estratégico, de aceitar o Estado como regulador ativo? Ou uma perdulária, sem produtividade, voltada para si, sem tecnologia incorporada? Uma economia atenta aos imperativos categóricos do planeta, a começar da agenda climática e ambiental, ou caolha, dedicada à destruição da natureza, ao desmatamento predatório, à conquista da terra como bem a ser explorado sem cautela e sem interesse coletivo?

Não temos um projeto para revitalizar a Federação, equiparar minimamente estados e municípios, dar a cada um deles as condições necessárias para progredir. O País está manco, caminha claudicando.

Não temos um plano para recuperar os sistemas vitais, a educação, a saúde, a assistência – a proteção social. Tudo nessas áreas é imperfeito, deixa a desejar, as carências estão expostas à luz do dia, sem que saibamos como abordá-las.

Falta-nos um projeto de Estado, um padrão de governança que tenha estabilidade e produza resultados, que valorize e blinde as instituições contra aventureiros autoritários, ideólogos reacionários, redes irresponsáveis, negacionistas contumazes, oportunistas, corjas de malfeitores que só pensam nas vantagens a obter, que são ignorantes da sociedade existente. Estamos sentindo na pele as consequências do desvario que nos acometeu em 2018 e possibilitou a eleição de uma cúpula de estroinas perversos.

É assustador constatar que estamos assim apesar de possuirmos recursos técnicos, intelectuais, culturais e políticos para reinventar o Brasil. Vivemos como se dependêssemos de um milagre celestial, de uma explosão popular ou das conclusões de uma CPI no Senado. Por que nossos políticos preferem se entregar ao jogo miúdo da pequena política, a lançar granadas de baixa potência e que não atingem o alvo, optando por privilegiar seus interesses partidários, regionais, ideológicos, em vez de oferecer algo consistente à sociedade?

Quero crer que isso se deva a alguns fatores.

Primeiro, nossos políticos não têm dimensão intelectual. Não falo de formação escolar ou de diplomas, que todos os exibem a mancheias. Falo de capacidade de compreender o mundo, a sociedade em que atuam, os cidadãos que os elegem. Nesse ponto, falta-lhes o fundamental. Ética pública democrática, domínio da linguagem, generosidade cívica, comunicação. Em muitos falta também honestidade.

Segundo, os partidos vivem em crises que se sucedem sem interrupção e os impedem de atuar como entes coletivos, que saibam disputar o poder sem virar as costas para a sociedade e com coesão suficiente para que sejam confiáveis para o eleitorado. Ora se estapeiam em brigas internas fratricidas, ora se arrastam para obter os apanágios e as prebendas do governo de plantão, ora se entregam aos mandachuvas de sempre, incapazes de confrontá-los ou ponderar sua imprescindibilidade. Gostam de polarizações simplificadoras, da posição confortável de repetir mantras surrados, como se servissem para todo o sempre. Nada disso ajuda. Faz com que se bloqueiem esforços para conceber e praticar a política de outro modo.

Terceiro, a base do que mais nos falta: capacidade de articulação nacional e democrática. O provincianismo e o tribalismo político predominam. Hoje se admite que em 2022 se vai repor a polarização que nos atazana a vida desde 2018. Fala-se em “terceira via” como se fosse mágica, mas pouco se faz por ela. Não se reconhece que o polo Lula é superior em tudo ao polo Bolsonaro e que, portanto, não se deveria bater em Lula e nos petistas, mas, sim, buscar convencê-los de que o entendimento amplo é o melhor caminho para tirar o País do atoleiro em que se encontra. O PT poderá voltar ao governo, por que não? É democracia, não é? O que se deve ter como meta é reconhecer que tudo terá de ser processado para que o País renasça. Por todos, incluídos Lula e o PT. Sem isso será mais do mesmo.

Lula e o PT, afinal, não são os únicos jogadores e é muito fácil atribuir a eles a responsabilidade pela não existência do que poderia reconstruir o Brasil e unificar os brasileiros. É fácil, mas é um equívoco, que somente serve para ocultar a incompetência que grassa entre os demais jogadores.


Publicado em O Estado de S. Paulo, p. A2, 22 maio 2021.

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