Aconteceu como se esperava. Com a paralisação dos transportes públicos, o fechamento das agências bancárias e de parte das lojas e escolas particulares, as cidades ficaram vazias. Protestos e piquetes localizados ajudaram a criar a sensação de excepcionalidade, mas a rotina da vida também mostrou sua força.
A paralisação do dia 28 se efetivou, houve adesão em todos os estados e no DF. Bagunçou o coro dos contentes, perturbou a “ordem” e subverteu a “normalidade”, mostrando que o sistema não controla tudo. Deste ponto de vista, foi um momento catártico, que deveria ser mais saudado que lamentado. Serviu de advertência.
O problema é que não ficou claro seu alvo estratégico. Milhares foram às ruas ou cruzaram os braços sem saber se a questão era defender direitos, protestar contra Temer ou fornecer gás para a candidatura de Lula. Eventualmente, foi tudo isso junto e misturado.
A paralisação deixou aberto o desafio de ser analisada e compreendida.
Ressonância
Não foi propriamente uma “greve geral”, mas os sindicatos e as centrais sindicais mostraram que têm ressonância e conseguem parar ao menos parte da atividade produtiva e sobretudo a mobilidade das pessoas. Ao lado deles, as redes sociais fizeram a convocação repercutir, produzindo aquele efeito cascata que faz com que tudo se dissemine com rapidez e não possa ser contestado. Com isso, a vontade de “fazer algo” e mostrar oposição ganhou fôlego.
O fator que dominou o dia não foi a capacidade de mobilização, mas o descontentamento, a insatisfação social, devidamente turbinada pela confusão e pela simplificação, bem retratadas nos slogans prevalecentes, tipo “fora Temer”, “querem acabar com a aposentadoria” ou “tire as mãos de nossos direitos”.
Partiu-se do suposto de que as reformas tentadas pelo governo Temer agridem direitos sociais, mas ninguém soube demonstrar, de forma cabal, quais direitos estão de fato sendo agredidos. Falou-se que a reforma trabalhista acabará com os sindicatos, mas não se discutiu a força e a representatividade que podem ter entidades mantidas pelo artificialismo do imposto sindical. Falou-se que a prevalência do negociado sobre o legislado prejudica os trabalhadores, mas não se esclareceu que a reforma valoriza os acordos coletivos que não alterem temas como FGTS e 13º salário. Não se destacou também que a reforma “enquadra” a Justiça do Trabalho, impedindo-a de complicar ou anular acertos feitos entre patrões e empregados. E assim por diante.
A ideia que se espalhou como rastilho de pólvora é que a reforma é contra os trabalhadores. E muita gente aceitou isso sem nem sequer analisar o que está sendo discutido e aprovado no Congresso Nacional.
Com a reforma previdenciária ocorre algo ainda pior, mais grave, até porque o tema tende a ser assimilado de modo dramático pela população. A reforma pretendida tem seus defeitos e seus problemas, mas não pode ser interpretada como algo regressista. Ela não liquida direitos, mas regulamenta direitos existentes. Nessa operação, algo se perde, evidentemente, mas o certo é saber se o fundamental estará mantido ou não e se as modificações serão introduzidas para alcançar a todos, e não só aos que já estão incluídos. Talvez ela tire direitos de quem tem e conceda direitos a quem não tem, e aí será o caso de discutir tudo na ponta do lápis.
O direito à aposentadoria continua tão “sagrado” quanto antes, mas agora, em vez de se aposentar aos 55 anos, os trabalhadores farão isso aos 62 ou 65 anos. A idade de aposentadoria não é um direito, mas sim regulação do direito à aposentadoria. É melhor trabalhar menos? Claro que é. Assim como é melhor se aposentar logo de cara com 100% do salário na ativa. A questão é saber se o País tem como sustentar isso, num quadro de modificações demográficas fortes e de reestruturação produtiva. Se não houver uma nova regulamentação, algum risco haverá para os benefícios ou recursos serão drenados de algum outro lugar. Dadas a correlação de forças e a lógica do sistema, é fácil imaginar onde estarão os drenos.
No ponto em que se encontra hoje, ainda em discussão, a reforma manterá muitos privilégios, que beneficiam certas categorias (juízes, policiais, professores). Esse poderia ter sido um dos focos do protesto, mas as centrais sindicais têm o rabo preso e suas corporações estão interessadas justamente na manutenção daquilo que parte da população considera injusto. Para cobrir isso, enfatizam uma injustiça geral que não se configura com clareza.
A reforma previdenciária é problemática. Pelos termos em que está sendo proposta, por quem a propõe e pelo momento. Do lado do governo, carente de força e representatividade, o cálculo é que basta apoio congressual, que pouco importa, no momento, o apoio social. Temer paga o preço de certa sobranceria e da real incapacidade de fazer política com “P” maiúsculo.
Falta de paciência
Por outro lado, na sociedade e na vida associada, não há paciência para discutir o tema. Tudo é contestado de afogadilho, impulsionado pela raiva, pela insatisfação generalizada e pelo oportunismo político. Pegou-se carona no descontentamento para criar um clima de resistência e oposição que de modo algum está organizado. Fabricou-se uma ideia de que “toda a sociedade” está contra Temer e as reformas e que isso significa que ela está automaticamente do lado da oposição, do PT e de Lula. É uma ilusão.
Muita gente parou e insuflou a paralisação sem conhecer as reformas, pura e simplesmente para contestar o governo Temer. Misturou-se tudo num bolo só: falhas e erros das reformas, problematização de direitos sociais, falta de legitimidade governamental, repulsa aos políticos e à vida atual, ressentimentos contra o impeachment de Dilma e solidariedade a Lula.
Teria sido importante que a recusa às propostas do governo viesse acompanhada de um projeto alternativo consistente e articulado, que não se limitasse ao conservadorismo do deixar tudo como está. Faltou ao movimento, porém, uma preocupação técnica mais articulada, que auxiliasse a sociedade a entender o que está em jogo e que opções existem.
Houve luta, com certeza, mas perdeu-se uma oportunidade de ouro para se esclarecer a opinião pública e demarcar o terreno das esquerdas. A polarização que amarra a ação democrática se reproduziu, opondo coxinhas a mortadelas. E a esquerda ainda está tendo de engolir a pecha de “conservadora”.
O País parou, mas na semana que vem, depois do Primeiro de Maio, quando tudo voltar a funcionar com alguma “normalidade”, a vida seguirá e pouco avanço oposicionista haverá.
Talvez não se tenha reforma previdenciária, mas nem por isso o futuro estará mais bem protegido.