Tempestade de erros

Ilustração Maurits Cornelis Escher
Ilustração Maurits Cornelis Escher
A ciência e o bom senso não impediram que Dória politizasse a vacina e proclamasse um sucesso sem a devida confirmação

Foi tudo cuidadosamente preparado para ser um grande show. Dia 23/12 a Coronavac, a “vacina do Butantan”, seria formalmente apresentada ao público e encaminhada para aprovação da Anvisa. Ameaçaram acender as luzes antes, dia 15, mas acharam por bem adiar o anúncio em prol de uma massa mais “robusta” de dados. Aí sim a vacina estaria pronta para “salvar vidas”.

Montou-se o palco, cuidou-se da coreografia, até discursos foram escritos. A montanha, porém, pariu um rato.

As coisas começaram a ficar esquisitas quando, na véspera, o governador João Dória decidiu viajar para tirar férias em Miami, logo depois de dizer que novas medidas de endurecimento seriam adotadas em São Paulo. Um péssimo exemplo de comportamento público.

Queria isso dizer que Dória não iria ao evento da vacina, o que levantava muitas suspeitas de que a Coronavac dera chabu. Pois, justo ele, que não perdera uma oportunidade sequer para colar sua imagem à da vacina?

Tirou-se então do bolso a explicação: como os dados dos testes feitos no Brasil eram muitos diferentes dos realizados em outros países, o laboratório chinês solicitara um derradeiro cruzamento de informações, uma consolidação definitiva, com validade internacional. A desculpa, bastante esfarrapada, não convenceu ninguém.

Pobre Dr. Dimas Covas, diretor do Instituto Butantan, que ficou com as mãos abanando, obrigado a dizer que os testes brasileiros haviam posto a Coronavac “no limiar da eficácia”, o que, em português usual, significa eficácia de baixa a média. As máscaras de quem estava com ele no palco impediram que aparecessem ao público as fisionomias de abatimento, vergonha e frustração.

Bem que, in off, os técnicos do Butantã deixaram escapar que a eficácia não competiria com a vacina da Pfizer e a Moderna, de terceira geração e feita com tecnologia de RNA mensageiro, que absorve as informações genéticas específicas da proteína do vírus que pode desencadear a resposta imune no corpo. A Coronavac segue o padrão tradicional de imunização, trabalhando com a replicação do vírus inativado. São diferenças técnicas importantes, que deveriam ter servido para refrear os impulsos propagandísticos do governo paulista.

A ciência e o bom senso, porém, não impediram que Dória politizasse a questão e proclamasse um sucesso sem a devida confirmação.

A comunidade científica não perdoou. Choveram críticas de todos os lados, implacáveis. Falou-se de falhas de comunicação, de precipitação, de pressa em marcar datas que não seriam cumpridas. A não apresentação dos dados deixou evidente que não há como cantar vitória antes de conclusões técnicas categóricas. Não há como brincar numa área cujos processos dependem de ritmos e procedimentos que escapam à lógica política.

A situação vexatória repercutiu na opinião pública e está chegando aos brasileiros. Se, antes, já havia desconfiança com a vacina, agora há também intranquilidade, insegurança e ansiedade. A especulação, que corria solta, circulará com intensidade ainda maior.

E tudo isso às vésperas do Natal!

Politicamente, o desgaste de Dória e do PSDB será enorme. O tropeço da vacina se soma à viagem intempestiva do governador, à suspensão da gratuidade no transporte público para a faixa entre 60 e 65 anos, ao aumento extravagante dos salários do prefeito de São Paulo e de seus secretários. Uma tempestade de erros grosseiros, que aviltam e causam indignação. Erros que não costumam ser esquecidos com facilidade pelos eleitores.

Se Dória, em particular, ainda tem planos de disputar o Planalto em 2022, deve estar, a essa altura, refazendo as contas.

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