Um país sem eixo

Ronnie
Chegamos ao ponto atual graças a uma confluência de fatores, alguns estruturais, outros associados à vida tecnológica e à globalização. Os partidos viraram as costas para a educação política dos cidadãos. Deixaram que a crise fosse se sucedendo sem processamento político.

Não dá para dizer, sem mais nem menos, que a greve ou o locaute dos caminhoneiros foi uma ação da direita ou por ela impulsionada. Não dá nem para cravar que se tratou de uma ação reivindicativa dos autônomos ou se o peso maior foi dos grandes empresários. O setor é complexo, só um parcela que nele atua é composta por motoristas autônomos. O grosso do trabalho passa por pequenas e médias empresas que são subcontratadas por grandes transportadoras. O que houve, e continua a haver, foi greve e locaute, juntos e misturados, numa grande confusão e num enorme vazio.

O movimento convulsionou o país e e mostrou o tamanho da fragilidade do modal de transporte e da infraestrutura nacional. Revelou um país despreparado para enfrentar situações de emergência, um governo com dificuldades impressionantes e uma ausência quase absoluta de consenso sobre o que fazer. Gerou um caos inevitável, fazendo com que despertasse o clamor antigovernista e pela volta da “ordem e da autoridade”. O movimento vinha se arrastando há tempo, e não foi por falta de avisos que eclodiu em maio. O ânimo e o humor do setor são conhecidos. Já haviam dado o ar da graça em governos anteriores desde Fernando Henrique Cardoso, passando por Lula e Dilma. Jamais levou a que houvesse uma iniciativa dedicada a enfrentar seriamente o problema que aflige o universo do transporte de cargas: o preço do diesel e os impostos. Agora, os interesses mais organizados ou menos exploraram a fraqueza e a inoperância do governo federal para crescer e praticamente encurralar o presidente da República e seu ministério, levando junto o mundo político e partidário.

Apesar de não ter sido apoiado por nenhuma força de esquerda ou pelas grandes centrais sindicais, o movimento obteve surpreendente ressonância social e atiçou os que querem o desgaste do governo Temer. Quando mais se manteve a paralisação, mais vozes de direita e de esquerda se fizeram ouvir para desancar o governo, a presidência da Petrobrás e sua política de preços. Com os dias se passando sem que a crise encontrasse solução, outros setores (como os empregados da Petrobrás) começaram a se mexer, ou para aproveitar a onda ou para não ser ultrapassada por ela.

Descortinou-se assim um horizonte sombrio, no qual a manifestação dos caminhoneiros catalisou a fúria dos brasileiros, que de repente extravasou em ressentimento e decepção. O ambiente, que já era ruim, ficou péssimo, com uma impressionante deterioração dos termos do debate.

Greves que afetam setores estratégicos como são os combustíveis e os alimentos de empresários são sempre complicadas. Assustam e fomentam todo tipo de pânico. Num país em que quase tudo é feito por rodovias, os caminhoneiros viraram uma corporação poderosa. Não foi por acaso que tanta gente lembrou, nos últimos dias, o papel que os congêneres chilenos tiveram no processo que levou à derrubada e ao assassinato de Salvador Allende, no início dos anos 1970.

O governo tentou ceder, procurou negociar, mas os fracassos se sucederam. As Forças Armadas foram convocadas para desbloquear estradas e garantir  a circulação dos caminhões. O movimento foi sendo mantido. Até quando, ninguém sabe. Com quais estragos, também não se sabe. Nem com qual apoio.

Filme de horror

A principal pergunta que não foi respondida mostra bem o que se está tendo nesses dias de mau agouro: como é possível que pessoas que se dizem trabalhadores e reivindicam direitos e vantagens podem por em marcha uma operação que ameaça levar o conjunto da sociedade ao colapso? Bloqueios de estrada, prejuízos assustadores, perda enorme de alimentos, cidades paralisadas por falta de combustível, aeroportos em estado de choque, hospitais cancelando cirurgias, escolas fechadas, milhares de pessoas sem poder trabalhar — foi o cenário que se disseminou, levando muita gente à beira do pânico. Onde foi parar a consciência cívica dos manifestantes? Uma greve de motoristas de caminhão não leva a que se bloqueiem estradas, que devem permanecer desimpedidas para a circulação dos que não aderirem à paralisação. Foi tudo estranho demais.

Numa situação assim periclitante, ninguém — nem o governo, nem os políticos, nem os partidos, nem os caminhoneiros — veio a público tentar esclarecer os fatos e ensaiar uma atitude política compatível com a gravidade do momento. A exceção ficou por conta de alguns órgãos da imprensa, que se esforçaram para oferecer um mapa da situação. A irracionalidade se espalhou , como se tudo estivesse na mais perfeita normalidade. Ninguém alertou para os efeitos colaterais sobre a vida cotidiana e sobre a democracia, poucos se lembraram de que no fim de tudo quem pagará o prejuízo serão os brasileiros, todos eles, a começar dos que já são prejudicados.

Na base do movimento, havia um protesto contra os preços do diesel e os impostos. Houve uma brutal falha de comunicação governamental, que impediu que a política de preços da Petrobrás fosse assimilada pelo conjunto dos agentes. Todos juram querer uma Petrobrás forte, ativa e altiva, mas não parecem dispostos a aceitar que ela funcione como uma empresa. A recuperação da Petrobrás é uma necessidade real, mas requer um ambiente adequado para evoluir e produzir os resultados esperados.  Sem um pacto entre os agentes envolvidos — políticos, governantes, caminhoneiros, distribuidores, população –, a recuperação pode morrer na praia. Algo teria de ter sido feito para que essa discussão chegasse à opinião pública e ao debate político. Os próprios políticos deveriam ter impulsionado o debate. Mas eles não estão em boa fase, para dizer o mínimo.

Na falta de articuladores do movimento e de lideranças democráticas responsáveis, o que se viu foi um festival de oportunismo, silêncios, frases feitas e demagogia, que se superpôs a um governo atarantado que não sabia como agir.

Roteiro pronto e acabado para um filme de horror. De repente, de maneira caótica, saiu para fora uma espécie de recalque coletivo contra tudo e contra todos, próximo da desobediência civil e do boicote tributário, alavancado pelo mote de que “ninguém  aguenta mais pagar tantos impostos e não receber em troca serviços de qualidade”. Chegado a esse ponto, o precipício se apresentou, com gente falando em “parar o país”, em pedir “intervenção militar”,  em “suspender as eleições”, em marchar até Curitiba para “soltar Lula”. O apoio aos caminhoneiros se misturou com a convicção de que algo deve ser feito contra o “governo corrupto” e a “classe política”, sem que se soubesse o que colocar no lugar.

E enquanto isso, como expressão de um grave autismo político, vozes se levantaram para dizer que o melhor mesmo é pegar carona nos caminhões e puxar a tão sonhada “greve geral”. Contra o quê ou a favor do quê, ninguém diz. Nem ninguém se preocupa em esclarecer se uma “greve geral” é viável e pode ajudar. O voluntarismo e a excitação deixaram claro de que não se sabe o que falar, pensar e fazer.

Uma agenda ausente

Fosse outro o país e outra a época, algo estaria sendo feito para recompor o relacionamento entre o Estado e a sociedade. Vozes sensatas e positivas estariam a ser ouvidas. O sistema político reagiria para tentar viabilizar soluções. A intelectualidade falaria mais, escreveria mais, debateria mais, ajudaria a propor uma saída. Haveria uma sincera preocupação com o risco de rupturas. Mas nada disso integra o menu desses tempos brasileiros. O que se viu foi uma ampla indigência política e intelectual, amplificada pelo radicalismo retórico e pela efervescência das “narrativas” épicas e salvacionistas.

Fosse outro o momento, alguém estaria tentando criar condições políticas para que se iniciasse uma guinada na política de transportes, que viesse no bojo de uma ação de “unidade nacional”. Recuperar as ferrovias e redimensionar o transporte rodoviário. Discutir a fundo a questão tributária. De quebra, acelerar com radicalidade a adoção de uma nova matriz energética. Ultrapassar a dependência que se tem dos combustíveis fósseis, introduzir tecnologias ferroviárias de última geração, enquanto os carros voadores não chegam.

Tudo isso, porém, são tarefas para um país de bravos, e hoje não vivemos num assim. Faltam-nos justamente os bravos, os intrépidos, os sonhadores. Os líderes.

Partidos políticos, candidatos e sindicatos de trabalhadores, posicionados ao centro, à direita ou mais à esquerda, não se fazem ouvir, a não ser discretamente. Todos se comportam como reféns de uma situação que pode fugir do controle e levar a que um fogaréu se alastre. Os candidatos presidenciais, em particular, morrem de medo de perder votos, mas no fundo não sabem mesmo o que dizer. Quando instados a se manifestar, optaram ou por defender genericamente o mercado e o direito dos caminhoneiros, ou por desancar o presidente da Petrobrás e a política governamental.

Por que não se trabalha para que a agenda do país passe a incluir a retomada do transporte ferroviário e uma nova política de transportes? Por que os temas de fronteira — energia eólica e solar, combustíveis vegetais, gás, biomassa — não ganham destaque no debate nacional? Por que não se quebram os monopólios lesivos ao interesse público? Marina Silva fala disso, mas poucos a ouvem. Quanto aos outros, divulgam o silêncio ou o lugar comum.

A coordenação que falta

Chegamos ao ponto em que estamos hoje graças a uma confluência de fatores. Alguns são estruturais, outros têm a ver com os efeitos da vida tecnológica e da globalização, e outros derivam da política, da luta política sobretudo. Nas últimas décadas, os partidos abandonaram a trincheira que lhes deveria ser típica: viraram as costas para a educação política dos cidadãos. Deixaram que as coisas da vida fossem se sucedendo sem processamento político. Meteram os pés pelas mãos quando se tornaram gestores e governantes. Permitiram que a corrupção crescesse e produzisse um extraordinário desencantamento cívico com a política. Os cidadãos se afastaram, ficaram órfãos, derivaram para posições anárquicas, maniqueístas, autoritárias e niilistas. Uma raiva coletiva foi crescendo em silêncio, sem que se soubesse se e quando desaguaria na cena pública.

Enquanto isso, a esquerda foi enfiando a cabeça no buraco, fazendo de conta que o problema não era com ela e que tudo, no fundo, poderia ser explicado com a narrativa do “golpe” e da “perseguição” ao Lula. Ajudou a ampliar a raiva coletiva.

Os democratas progressistas, os liberais autênticos, os socialdemocratas, a esquerda reformista  — ah, os nomes! –, por sua vez, fizeram do desencontro e da dispersão a praia preferida. Acamparam nela, levando ao paroxismo uma competição interna suicida.

O resultado é o que se vê hoje: um buraco cívico, no qual faltam uma governança democrática eficiente, um mínimo de unidade política, de projeto nacional, de articulação democrática, de coordenação. O polo democrático progressista e reformista, que existe, está tardando demais para se afirmar. Poderá pagar caro por isso.

Não vale a pena assoprar as brasas ou buscar chifre em cabeça de cavalo. Sempre haverá quem busque se aproveitar da confusão, gente que se alimenta do caos e só consegue viver a partir dele. São figuras conhecidas, que circulam há tempo com esse programa. Mas também há um gigantesco mal-estar social sendo cozido no caldeirão da insensatez.

Há corporativismo, na sua expressão mais miserável, aquela em que o interessado só pensa nos seus botões e lixa-se para todo o restante, nem sequer se dando conta de que seus botões podem prejudicar toda uma comunidade de pessoas muito mais prejudicadas. Há despolitização e falta de cultura democrática, que travam o debate. Tudo, além disso, está marcado pelo baixo nível, pelo ressentimento, pelo clima de ódio aos políticos.

Corporativismo, oportunismo, chantagem, incapacidade de enxergar a floresta, inoperância governamental e autoritarismo andam de braços dados. Ajudam a manter a crise  e a aumentar a tensão, levando o pânico para dentro das casas. Greve agora, companheiros, não é só um ato das esquerdas.

A polo democrático progressista e a opinião pública democrática precisam sair do marasmo e ter papel ativo. Não para bater nos caminhoneiros ou em Pedro Parente, mas para oferecer saídas, contribuir para o encontro de soluções, alertar para o risco que haverá se continuar a crescer uma bola de neve que, no passado, seria chamada de “lesa-pátria” e que, independentemente do rótulo, não tem qualquer potência para ajudar a que o país encontre o rumo.

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