Uma montanha a escalar

Takashi Fukushima. Óleo sobre tela.
Takashi Fukushima. Óleo sobre tela.
O novo governo nasceu minoritário nas instituições, com estreita maioria eleitoral e pouca folga para compor uma forte base de apoio. Precisa matar um leão a cada dia.

Já era para estar soprando um vento de otimismo e esperança, depois do inferno que foram os anos Bolsonaro. A vitória de Lula nas eleições do ano passado mostrou que parte importante da sociedade deseja experimentar outros caminhos. A expectativa de que se abriria uma nova era governamental impulsionou os votos recebidos por Lula, obtidos tanto por seu carisma quanto pela força do PT e pelo apoio de inúmeros democratas, cientes de que o País se arrastava numa inaceitável aventura reacionária.

Porém, em vez da bonança que se segue aos tempos ruins, uma onda de preocupação e decepção ameaça crescer, misturada com as calamidades deste início de 2023. O 8 de janeiro, a tragédia Yanomami e as chuvas catastróficas no litoral norte de São Paulo consumiram muitos esforços governamentais. O governo Lula mal se distanciou do tiro de largada, caminha em busca de um eixo que o estruture e lhe permita produzir resultados. Necessita de tempo, foco e determinação. O problema é que os cidadãos e o País estão com pressa, querem ingressar em outra etapa.

Não podemos perder o que tem havido de positivo. O aumento do salário mínimo, a correção do Imposto de Renda, o relançamento do programa habitacional, o ajuste das bolsas de estudo e pesquisa, a proteção aos Yanomamis, a nova atitude nas relações internacionais e na política ambiental, a valorização do pacto federativo são iniciativas que merecem elogios e fazem a diferença. Ocorre que não estão sendo assimiladas pela opinião pública.

A discrepância se vincula ao hiato que existe entre as instituições e os cidadãos. Há muita descrença na política, no governo, na gestão pública. Parte disso deriva do ambiente tóxico criado pelo bolsonarismo, outra parte decorre da reprodução de uma cultura antipolítica, que não é exclusividade nossa. A democracia se reafirma como valor no mundo todo, mas não há país que esteja a aplaudir o funcionamento do sistema democrático real. No Brasil em particular, a impressão é de que o Congresso, o Poder Executivo e o Judiciário estão desconectados da sociedade, distantes das pessoas e surdos às suas expectativas. A opinião social refratária à política se derrama por toda parte.

O governo, por sua vez, ainda não ajustou seus ponteiros. Não mostrou seus planos e diretrizes. Tem-se sustentado pela reiteração de uma nova narrativa, que não está sendo oferecida com um mínimo de conteúdo programático. Em vez de dizer o que pretende, o governo se consome em apontar os culpados pelas mazelas sociais do País. É uma manobra que tem limitações. Perde-se tempo precioso em descobrir os infiltrados bolsonaristas, por exemplo, sem que se possa garantir que seus substitutos serão indicados por critérios técnicos razoáveis.

É preciso mesmo combater as toxinas bolsonaristas e os golpistas de plantão, mas é ainda mais indispensável que a voz governamental faça a devida distinção entre seus opositores. Reunir em um único bloco todos os adversários – os bolsonaristas-raiz, os democratas moderados, passando pelo mercado, pelas “elites” e pelos “ricos” – termina por reproduzir uma polarização que só provoca turbulência e agitação, empatando a ação político-administrativa.

O novo governo está forçado a escalar uma montanha. Ele nasceu minoritário nas instituições, com estreita maioria eleitoral e pouca folga para compor uma forte base de apoio. Enfrenta um leão a cada dia. Para poder atuar no Congresso, por exemplo, precisa se entregar à política miúda, às negociações, aos cálculos eleitorais e ao apetite voraz dos agentes políticos, quer dizer, precisamente àquilo que mais horroriza a opinião pública. A política miúda, embora seja indispensável, não costuma formar consensos consistentes, destes que oxigenam qualquer governo que pretenda inaugurar uma nova política. Não funciona como ferramenta de convencimento público.

A narrativa de combate – que aparece em falas do presidente e em manifestações formais do PT – é boa para vitaminar militantes partidários e apoiadores de primeira hora. Não promove, porém, o diálogo com os democratas e a pacificação do País, especialmente quando ecoa desconectada da apresentação do rumo buscado pelo governo. Funciona, sobretudo, como um expediente escapista, que cria obstáculos magnificados para explicar a deficiência de formulação programática.

Confrontar o Banco Central e os juros altos em nada contribuiu, por exemplo, nas últimas semanas, para dar densidade à discussão sobre a realidade econômica e fiscal do País. Ao contrário, criou atritos desnecessários, que só serviram para passar a sensação de que todo o problema nacional estaria na economia, o que é, evidentemente, uma bobagem.

Retóricas combativas fazem parte da política. Soltas no ar, porém, não ajudam a que se formem apoios que deem estabilidade e propulsão a governos reformadores. Palavras ardentes não substituem ações concretas, do mesmo modo que uma retórica de confrontação não dispensa a capitalização inteligente dos feitos e das possibilidades governamentais.


Publicado em O Estado de S. Paulo, 25/02/2023, p. A6

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