A vida, suas conexões e experiências

Livro Edgard
Edgard de Assis Carvalho acaba de lançar "Conexões da vida. Uma antropologia da experiência". Li o livro assim que pude tê-lo em mãos, quase sem tomar fôlego. Emocionei-me muito, parei várias vezes para pensar, rememorar, rever a mim mesmo. Não me recordo de ter lido algo tão pungente e revelador.

Edgard de Assis Carvalho foi meu professor de Antropologia na Escola de Sociologia e Política de São Paulo, no início dos anos 1970. Um dos grandes professores que já vi em ação. Carismático, envolvente, seguro nas opções teóricas, suas aulas eram magnéticas, ofereciam panoramas pouco explorados nos cursos de Ciências Sociais, que em sua maioria praticavam uma Antropologia tradicional. Edgard integrava outra vertente, e foi com ele que descobri que o estudo das populações primitivas podia ser feito com o marxismo e ganhar novos significados com isso. Em seu curso, entrei em contato com Claude Meillassoux e Emmanuel Terray, que modificaram meu modo de considerar a Antropologia.

Tornamo-nos amigos quase que de imediato. Como Edgard morava a poucas quadras da Escola, eu e outros colegas costumávamos acompanhá-lo até lá depois das aulas e mesmo visitá-lo. Quando me formei, no final de 1972, fui dar aulas na PUC-SP por iniciativa e convite de Edgard. Passei a integrar a equipe pedagógica de Antropologia e Realidade Brasileira, que atuava no Ciclo Básico da Universidade. Viramos colegas também na Escola de Sociologia e Política. Em janeiro de 1973, pouco antes do início das aulas, tornei-me seu assistente de campo da pesquisa que desenvolvia com o povo Terena, no Posto Indígena Araribá, no interior de São Paulo. Viajamos à reserva, onde nos hospedamos e trabalhamos durante duas ou três semanas. Além do que pude aprender, também reforcei a amizade com Edgard.

Nos dois anos que passei na PUC, formamos um maravilhoso grupo de amigos, que se reuniam todo final de semana para invariáveis porres homéricos e muita comida. Edgard era um dos que pilotavam a cozinha, junto com Maria Lúcia e Gera Di Giovanni, às vezes com Evaldo Sintoni e Ceres Medina. Lembro-me com muitas saudades daqueles anos, que foram marcantes em minha trajetória de vida. As amizades neles feitas se solidificaram e persistem até hoje, em que pesem algumas perdas muito sentidas.

Depois, cada um seguiu seu caminho. Dividimo-nos pelas universidades paulistas. Edgard permaneceu na PUC, onde dá aulas ainda hoje e é uma referência intelectual. As amizades se mantiveram e sempre sabíamos uns dos outros. Houve tempos em que nos vimos com mais frequência, outros em que os contatos ficavam rarefeitos. No que diz respeito às relações entre mim e Edgard, creio que elas se converteram de fato em “amizade definitiva”, como ele gosta de dizer.

Continuei a acompanhar os passos do amigo, interessado em saber de suas vitórias e de seus percalços, de suas alegrias e de suas dores. Nos anos 1980, encontrei-o como meu colega de Departamento na UNESP de Araraquara, onde permaneceu até se aposentar em 2000. Dali em diante, Edgard reforçou sempre mais seu lado “cosmopolita”, passando a circular mais e a se deslocar pelas cidades de que gosta, Rio, Natal, João Pessoa, Porto Alegre, Paris, com uma agenda lotada.

Muito tempo transcorreu e ao pensar nisso sempre me deslumbro em constatar que o passar dos anos também pode preservar amizades e admirações, chegando mesmo a fortalecê-las, ainda que por caminhos heterodoxos.

Agora, Edgard acaba de lançar um livro: Conexões da vida. Uma antropologia da experiência (Natal: Editora Una). Li-o assim que pude tê-lo em mãos, quase sem tomar fôlego. Emocionei-me muito, parei várias vezes para pensar, rememorar, rever a mim mesmo. A narrativa me envolveu e fez minha imaginação voltar no tempo.

O livro está lindo e muito bem editado, com ilustrações botânicas preciosas, de Carl Ludwig Blume. É uma autobiografia, um memorial tecido com habilidade, coragem e determinação, sangue, suor e lágrimas, costurando episódios acadêmicos e episódios existenciais, equilibrados com felicidade, dando ao leitor um panorama da vida do narrador e das circunstâncias políticas e culturais em que ele se projetou. Ao final, surge por inteiro o Edgard intelectual, com sua evolução e sua reinvenção do modo de ser antropólogo, e o Edgard pessoa, com seus amores, suas frustrações, suas amizades, sua busca permanente de felicidade, suas angústias, escolhas e reflexões.

Ele deixa claro que pretende deixar fluir seus dilemas subjetivos em uma “narrativa interior, cujo caráter confessional é evidente”. Não é “uma autobiografia linear, nem um diário íntimo, mas uma vida narrada sem anteparos, censuras, ressentimentos”. Por meio dela, surge o intelectual e a pessoa em que ele se transformou, “com várias faces obscuras, lunares, mas com vontade de resistir à barbárie do pensamento que se espalhou pelos quatro cantos da Terra” (p. 69).

Um estilo se revela nas páginas do livro, marcado pela ironia fina, pela incessante procura de ligação entre o objetivo e o subjetivo, pelo esforço em surpreender o leitor e conquistá-lo, levando-o muitas vezes ao limite e à ultrapassagem de fronteiras: fronteiras morais, acadêmicas, disciplinares, existenciais são mostradas como empecilhos que degradam e extraviam, alienam e precisam ser explodidas, para que a vida pulse de modo pleno.

Não me recordo de ter lido algo tão pungente e revelador. Antes deste livro, eu conhecia somente parte de Edgard, e não porque ele escondesse o restante. Ele sempre foi muito transparente. Mas é que, vistos em um relato totalizante, os episódios ganham outras cores, outra vida, novos significados. Falam e revelam dimensões que não estavam no palco, embora estivessem à flor da pele. Soam como um grito, uma liberação, que sai do âmago do escritor, organiza tudo. Ampliam muito o anterior livro de Edgard, Virado do avesso (Selecta Editorial, 2005), no qual ele narra e discute o corpo – o seu corpo, antes de tudo – manuseado pela tecnologia médica depois de um brutal atropelamento, numa sensível reflexão sobre o esforço de regeneração.

Conexões da vida, porém, não é um livro que arrebate somente os que conhecem e gostam de Edgard de Assis Carvalho. Todos os que se interessam pela vida intelectual do nosso tempo aprendem muito com ele. Descobrem, por exemplo, as vantagens, a beleza, as agruras e tristezas da inserção profissional na universidade, com seus bastidores tóxicos e suas exigências protocolares despidas de sentido, com a fragmentação impulsionada por seus departamentos e suas práticas, as dificuldades que se criam para o desenvolvimento daquilo que foge dos escaninhos instituídos.

Os leitores descobrem, também, os caminhos inesperados que nascem da progressão mesma daqueles, como Edgard, que não têm medo de se reinventarem a si próprios, que compram deliberadamente essa briga. Conhecem o intelectual preocupado com “o antimarxismo instaurado na Antropologia”, que iria se converter numa “fonte de querelas insuperáveis que fragmentam os antropólogos em blocos sem diálogo” (p. 61). Acompanham sua reiterada angústia diante da Universidade, na qual “o caráter unitário do conhecimento foi perdido em nome das expertises disciplinares e da vigilância punitiva do dispositivo acadêmico” (p. 166). Refletem sobre sua constatação melancólica de que toda uma geração de amigos e colegas se afastou da utopia da busca de universais não cifrados, abertos e dialógicos. Com a perda da força do diálogo, ele observa, “os vínculos de amizade se fragilizaram”, tendo sido quando muito compensados por um “forte sentimento de cumplicidade que não se traduz em nada mais significativo” (p. 159).

Com o tempo, o antropólogo marxista que conheci no início dos anos 1970 foi-se questionando, buscando se renovar, explorando novos espaços e ambientes, frequentando outros circuitos e outras territorialidades, refazendo seu estilo discursivo. Tornou-se progressivamente um pensador da complexidade, bastante estimulado pela obra de Edgar Morin e de tantos outros que buscaram reposicionar a investigação em ciências humanas com novas perguntas, novas abordagens e inquietações, negadoras categóricas das separações entre homem, cultura e natureza.

A antropologia da experiência seguida por Edgard de Assis Carvalho o levou conscientemente para o terreno da complexidade. Afastou-o por completo da Antropologia tradicional e o fez mais vigoroso na leitura antropológica da vida humana. Ganhamos todos com isso.

Quero crer que ele está feliz com a trajetória seguida e as escolhas feitas. Está feliz, mas não necessariamente satisfeito. Continua a fazer planos, a se questionar. Sua meta é se tornar “um homem comum que vaga em busca de si mesmo”, aprofundando o “flâneur pós-moderno” em que se converteu, “que gosta da solitude mas não consegue viver sem o estar junto”.

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Rodrigo Augusto Prando
6 anos atrás

Muito boa a resenha da obra. Vou ler, certamente! Edgar, Evaldo, Milton, Maria Teresa e você são referências para todos nós, especialmente os unespianos. Ter sido aluno dele, Edgar, trouxe-me um bom conhecimento de Antropologia. Suas aulas eram de uma ironia ácida, às vezes, e com sua fala provocativa: “isso é uma merda”, “esse marxismo é uma merda”, etc. Tanto que, no trabalho final, intitulei como “Entre merdas e outras coisas”. Nunca me devolveu o texto, embora tenha me atribuído nota 10. Sinto demasiada saudade destes tempos de Unesp. Sinto falta dos meus professores. Espero que, em breve, você, Marco, também nos apresente um livro de memórias, como já tem feito por aqui! Abraços!

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