Foram potentes, fizeram-se sentir no Brasil todo, ecoaram no Palácio do Planalto, nas sedes dos partidos e das instituições da democracia representativa, nas mesas dos analistas políticos e dos pesquisadores.
O que se pode dizer agora? Muitas coisas: mais incógnitas que certezas, mas também algumas constatações categóricas.
Ficaram patentes o isolamento de Bolsonaro e a fragilidade do movimento que o emulou em 2018. Há um pato manco em Brasília, cercado pelas ilhas do Centrão. Sem partido, com apoios que precisam ser negociados e renegociados, sem popularidade e com um governo pífio, desgovernado e improdutivo. Água e fogo por todos os lados. Em que condições chegará a 2022 é uma pergunta que não quer calar.
Evidenciou-se também que o eleitorado está mais para propostas moderadas e que reivindicam eficiência e responsabilidade do que para postulações mais “quentes”, que prometem começar do zero, reinventar tudo de uma só vez ou apelar para o sopro divino dos santos. O PT perdeu muito mais do que um bom lote de prefeituras e todas as capitais. Continua a existir, mas sua fragilidade e sua incapacidade de reagir preocupam até os mais fanáticos de seus seguidores. Mais que votos, perdeu o eixo.
As caras novas que surgiram pela esquerda mais puro-sangue — Boulos, Manuela, João Campos, Marilia Arraes – mostraram que dá para defender a cor vermelha sem apelar a padrinhos ou chefes supremos, empregando uma linguagem diferente, sem tanto ódio e ressentimento. Apontaram um caminho, para o qual poderão atrair seus próprios partidos e ajudar a renová-los.
A “frente ampla de esquerda”, vocalizada em São Paulo e em Porto Alegre, foi mais circunstancial que garantia de futuro. Para ser “ampla”, teria de ir além da esquerda, o que não aconteceu. Poderá se consolidar no correr do tempo como união das esquerdas, claro, mas o que se teve agora foi a materialização de uma articulação em modo “anti”, contra Bolsonaro, contra o “bolsodória”, os “conservadores”, a “direita”. A mensagem positiva foi rasa, agarrou-se à esperança e à promoção de mais igualdade, o que é ótimo, mas não suficiente. A brigalhada PSB-PDT-PT no Nordeste empanou o brilho da festa e mostrou que nada será fácil nesse universo.
Duas coisas foram muito faladas, mas precisarão ser demonstradas.
Uma é o protagonismo adquirido por João Dória, que teria saído com mais força das urnas para postular uma candidatura presidencial. É uma hipótese que precisa ser confrontada, por um lado, com a rejeição a ele que reverberou por todos os cantos de São Paulo; por outro lado, com a vitória de Bruno Covas, que não segue a cartilha do governador e almeja recuperar a marca social-democrática do PSDB. Não quer dizer que haverá “luta interna” nos ninhos tucanos, mas que diante de Dória não se abriu uma avenida larga e desimpedida. E isso sem contar que Dória está buscando se “nacionalizar”, mas ainda não conseguiu e terá que levar em conta os outros nomes que vierem a apresentar os demais futuras parceiros de uma coalizão presidencial.
Falou-se muito também no protagonismo adquirido por Boulos, que lhe teria dado o posto de futuro comandante das forças de esquerda, uma espécie de “pós-Lula”. É uma hipótese também, que terá de ser examinada considerando ao menos duas questões. Boulos é um político regional, que ganhou musculatura localizada e foi impulsionado por um sentimento “mudancista” marcado pelas circunstâncias de 2020, por um desejo de renovação e pela repulsa a Dória. A segunda questão é que irá ombrear com pesos-pesados, Ciro Gomes e o próprio Lula, sem ter um partido forte a seu lado. Como é muito jovem, tem vários anos pela frente. Saiu-se bem em São Paulo, mostrando que continuará a avançar na medida em que permanecer infletindo para a centro-esquerda e temperando-a com doses mais carregadas de pimenta.
Precisamos, também, olhar de perto as pegadas partidárias. Será que elas foram tão visíveis quanto se pensa? Analisando o mapa eleitoral, tudo indica que PSDB, MDB, PSD, DEM e PP avançaram ou ao menos não perderam muita coisa. Mas os votos obtidos por essas legendas foram “partidários” ou “eleitorais”? Se tiverem sido mais circunstanciais, poderão se deslocar novamente na próxima eleição. Dizer que “o Centrão foi o grande vencedor” por ter chegado ao comando de mais da metade dos 5.600 municípios brasileiros tem o mesmo valor que uma nota de 3 reais. Será preciso abrir caixinha a caixinha para constatar o resultado efetivo disso.
A impressão é que as eleições de 2020 reforçaram uma tradição da política partidária brasileira: nossos partidos não são veículos sedutores e geradores de lealdades sustentáveis. Giram bastante em torno de pessoas e mudam de pele com grande frequência. Mesmo os maiores são assim. O que não quer dizer que não tenham importância, mas sugere que os votos que controlam não estão trancados em cestos herméticos.
Por esse motivo, não é razoável concluir que as vozes das urnas se manifestaram ideológica ou programaticamente, na linha a “direita” venceu a “esquerda”. O pragmatismo e a ativação de alguns redutos fechados funcionaram muito mais.
“Um ano para não esquecer” me fez lembrar de episódios da série Babylon Berlin (especialmente o ano 1929, na Alemanha).