O bolsonarismo, o presidente e o vírus

Siron Franco, Em nome de Deus. OST, 2018, 200 x 150cm
Siron Franco, Em nome de Deus. OST, 2018, 200 x 150cm
Criar confusão é um caminho clássico das manobras contra a democracia. Todo autoritário gosta de respirar o ar da beligerância. Não é diferente com Bolsonaro.

Dias de pandemia pedem solidariedade, clareza, entendimento. Generosidade. Alimentar o confronto, a disputa, a politização é contribuir para a disseminação do mal. Exigem-se ações coordenadas, sintonia, orientação. Nenhum cidadão pode deixar de contribuir. Teremos de reaprender a viver e quanto antes desarmarmos os espíritos, melhor.

Jair Bolsonaro permanece alheio aos sinais do tempo, de costas para a vida. É assustador. Seu último discurso à Nação (24/3) foi uma provocação recheada de platitudes, mentiras e agressões. Nenhuma grandeza, nenhuma sensibilidade, a mesma falação colérica de sempre. Em vez de passar confiança, provocou insegurança. Continuou a radicalizar, a debochar, a fazer pouco-caso, a atacar. Brigou com as diretrizes sanitárias da própria administração e aumentou o ruído com os governadores estaduais, em detrimento da unidade federativa tão necessária. A reação foi forte, mas não houve recuo. Ao contrário, Bolsonaro continuou fora de controle, autocentrado e irresponsável. Chegou mesmo a dar um passeio por Brasília, cumprimentando e abraçando populares.

Suas atitudes não se devem só ao baixo nível e a uma instável condição emocional. Há cálculo nelas. O olhar repousa em 2022 e no esforço para recuperar o capital político que, a esta altura, está em franca evaporação. Quanto mais a crise (epidêmica, econômica, política) avança, mais loucura precisa ser cometida. O cálculo é rasteiro, repleto de espasmos de ódio, mesquinharia e paranoia, narrativa e ideologia. Torpedeia o bom senso, esbofeteia a realidade, coloca em risco a saúde da população. Um comportamento verdadeiramente insano.

Criar confusão é um caminho clássico das manobras contra a democracia. Todo autoritário gosta de respirar o ar da beligerância. Não é diferente com Bolsonaro. O foco é confundir a população, desorganizar os sistemas, passar por vítima, para que se fomente a expectativa de que apareça a figura sinistra do “salvador”.

O presidente parece acuado e se deixa guiar pelas áreas mais extremadas de seu núcleo principal, o “gabinete do ódio”. Os ministros, salvo uma ou outra exceção isolada, batem-lhe continência. Fecham-se num mutismo incompreensível, covarde. Nos bastidores, muito ruído e informações cruzadas, indício de que o clima ficou pesado.

Há quem o aplauda e reverbere suas ideias. São pessoas com raiva, de mal com o mundo, que trafegam pela estrada do irracionalismo. Veem o desleixo e a irresponsabilidade de Bolsonaro como prova da disposição de não ceder à pressão dos políticos, da imprensa e dos interesses internacionais. Suas falas destrambelhadas e reacionárias são desculpadas em nome da ideia de que “antes dele era pior”. Pelas redes, o “gabinete do ódio” manda: batam nos governadores e prefeitos, que estão a causar recessão e desemprego. Os bumbos soam.

Os eleitores circunstanciais de Bolsonaro, aqueles que nele votaram para derrotar o PT, já devem ter percebido o engodo em que caíram. Mas os bolsonaristas de “raiz” permanecem ativos. Gostam do estilo grosseiro de Bolsonaro, o “mito”. São fanáticos, agressivos, ressentidos, preconceituosos, têm profunda aversão à política e à democracia representativa. Alegam ser contra a esquerda, mas na verdade agem contra a sociedade e a comunidade de homens e mulheres. Agem mesmo contra os valores religiosos que dizem professar.

O questionamento da política democrática é uma pérola dos manipuladores do sentimento popular. Está no miolo da extrema direita atual, encontrando sua câmara de eco na figura daqueles “engenheiros do caos” tão bem analisados por Giuliano Da Empoli. Sob a bandeira do iliberalismo e do autoritarismo reúnem-se populistas, nacionalistas, ultraconservadores, neonazistas, uma fila imensa de gente com ódio no coração. Todos falam em combater os políticos, lutar contra a esquerda, fechar a nação, defender a “pátria” e as pessoas comuns.

O bolsonarismo emergiu sem base organizada, liderado por um deputado tosco e inexpressivo. É uma agitação com baixa densidade associativa. Sua reprodução se dá nas redes. Luta para erguer a Aliança pelo Brasil, uma incógnita. Está limitado pela ausência de propostas para o País, pela baixa qualidade de seus quadros, por sua escassa civilidade, pelo uso intensivo da mentira, por sua falta de educação. O bolsonarista-raiz é intolerante, tem instinto persecutório e vê traidores por toda parte, sinal de uma fragilidade psíquica que se traduz em arrogância. Vive do combate a inimigos imaginários. Não conta com pensadores com capacidade de elaboração intelectual. São traços que dificultam a construção partidária e levam ao canibalismo em qualquer esforço organizacional.

A pandemia é um repto à humanidade e aos diferentes países. Desafia os democratas, que precisam se articular para agir sobre a vida. Quem chegou ao governo deve mostrar que sabe enfrentar um quadro de calamidade pública. Até agora, o bolsonarismo tem sido um fiasco. Seu líder máximo explora uma crise epidêmica mortífera, indiferente à desgraça da população. Os recorrentes panelaços dos últimos dias indicam que a base bolsonarista se estreitou e muitos cidadãos estão escandalizados com a conduta insensata e insensível de Bolsonaro. O ambiente geral é de crescente repúdio ao presidente.

Veremos se essa tendência se confirmará. O importante, agora, é defender as instituições democráticas, apoiar o sistema de saúde e respaldar governadores e prefeitos, de Doria a Caiado, que fazem um trabalho de coordenação que Bolsonaro, na ânsia de tiranete sem preparo, jamais será capaz de fazer.

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