O general, o marxismo, a história

NWS Liberati Tri perfeito
Do relacionamento que tive com Werneck Sodré guardo não só uma memória afetiva e mais prosaica (os discretos tragos de Vermouth que tomávamos em sua casa quando eu ia visitá-lo) como, e sobretudo, uma densa imagem política e intelectual.

Quando, em 1976, começamos a discutir a criação de uma revista teórica que agregasse os marxistas brasileiros e fizesse a crítica de algumas correntes das ciências sociais, houve um momento em que concluímos que seria preciso ampliar o grupo. Com Temas de Ciências Humanas, queríamos criar um espaço alternativo entre a “esquerda acadêmica” paulista, a velha guarda do PCB e as posições da chamada “esquerda revolucionária”, em nome da preservação e da renovação do marxismo.

Somente com o pequeno grupo que éramos não seria possível dar conta daquela tarefa. Era indispensável incorporar intelectuais que legitimassem a iniciativa e atuassem como uma ponte entre as novas e as antigas gerações de marxistas, transferindo seu prestígio para as páginas da revista. E isso devia ser feito desde a proposta inicial, incluindo aí a apresentação pública do Conselho Editorial.

Não foi muito difícil chegar ao nome de Nelson Werneck Sodré, general da reserva e profícuo historiador marxista, o único que disputava tal primazia com Caio Prado Jr.

Eu havia entrevistado Sodré em novembro de 1975, em sua residência, no Rio de Janeiro. Parte dela integrou um volume de entrevistas editado por Flávio Aguiar para a Editora Brasiliense (Cadernos de Debate nº 1 – História do Brasil. São Paulo, 1976), no qual se procurava mapear certos temas centrais e polêmicos da historiografia brasileira e submetê-los a historiadores que pudessem expressar pontos de vista contrastantes. A mim coube entrevistar Werneck Sodré e Décio Saes, com o objetivo de trazer à tona diferenças e angulações referentes à questão das relações entre classes médias e tenentismo. Evidentemente, na ocasião, não resisti à tentação de submeter o já calejado autor de História da Burguesia Brasileira a uma série de temas que fugiam do eixo central da entrevista. Afinal, tratava-se do meu primeiro contato com um autêntico «mito» da historiografia marxista brasileira. A receptividade foi total. Conversamos durante horas e, creio, selamos uma amizade que se fortaleceria nos anos de Temas  (1977-1980), para cujo Conselho Editorial ele foi convidado e aceitou.

Posteriormente, com o fim de Temas, o avanço da democratização e os próprios desdobramentos da vida profissional de cada um de nós, meu relacionamento com Nelson esfriou; os frequentes e intensos contatos de antes (ao vivo, por carta, por telefone) iriam ceder lugar progressivamente a bilhetes e telefonemas mais protocolares. Mas não chegaríamos a nos perder totalmente de vista. No que me diz respeito, daquele relacionamento guardo não só uma memória afetiva e mais prosaica (os discretos tragos de Vermouth que tomávamos em sua casa quando eu ia visitá-lo) como, e sobretudo, uma densa imagem política e intelectual.

Quando Werneck Sodré morreu, em 13 de janeiro de 1999, a cultura brasileira perdeu um de seus mais influentes intelectuais.

Os leitores mais jovens talvez não consigam dimensionar a observação, mas houve uma época, não tão distante, em que o nome de Sodré era sinônimo de visão renovada e ousada da história nacional, baseada no marxismo. Sodré foi um pesquisador incansável, dono de dados e informações impressionantes, que empregou para escrever dezenas de livros basilares, nos quais se formaram muitas gerações de brasileiros. Seu apartamento na Rua Dona Mariana, no Rio, guardava preciosidades que encantavam qualquer estudioso. Werneck Sodré nunca quis permanecer fora ou acima da polêmica.

A despeito de fazer pesquisa rigorosa e objetiva, em seus escritos pulsavam as causas em que acreditava e pelas quais se bateu a vida inteira: o socialismo, a independência nacional, a reforma agrária, o desenvolvimento do país. Foi daqueles intelectuais firmes como uma rocha, que jamais tiveram dúvidas sobre o lado em que ficar ou abriram mão de suas convicções. Ouvi-o dizer várias vezes que “não ter uma posição política justa é como não ter alma”, com isso querendo apresentar suas investigações não como mera especulação, mas como fruto de um posicionamento político. Talvez tenha sido o único oficial do Exército brasileiro a se proclamar abertamente marxista, a não ocultar suas simpatias pelo Partido Comunista Brasileiro e a sofrer as consequências disso, pela direita e pela esquerda.

Nascido em 1911, já nos anos 30 viajava pelo país a serviço do Exército. Em 1938, publicou seu primeiro grande livro, História da literatura brasileira, um esforço pioneiro para analisar as questões literárias a partir de “seus fundamentos econômicos”, isto é, das relações de propriedade e dos conflitos sociais. Pôs-se assim na mesma trilha de Caio Prado Jr. e Sérgio Buarque de Holanda, outros dois gigantes do período. Tornou-se professor de história militar na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, tendo sido dela desligado em 1951 em decorrência de suas posições políticas próxima do PCB.

Como todo pioneiro, cometeu exageros e defendeu posições discutíveis. Um dos principais formuladores da teoria que defendia a necessidade de uma aliança com a burguesia nacional como etapa para o desenvolvimento social brasileiro, Werneck Sodré forneceu a ela não somente suporte textual, mas sobretudo muitos e importantes elementos sobre a nossa formação histórica, com os quais promoveu o avanço do conhecimento sobre o Brasil. Foi muito difamado pelo modo como tratou a questão dos modos de produção que se sucederiam ao longo da história (o escravismo, o feudalismo, o capitalismo e o socialismo), base da distância que haveria entre ele e Caio Prado Jr.

Dos anos 30 até A farsa do neoliberalismo (1995), escreveria uma montanha de livros. Consta que foram cerca de 60. Muitos deles são hoje clássicos. Seu texto era abundante e bem tratado. O indispensável O que se deve ler para conhecer o Brasil, de 1945, em que arrola e comenta centenas de textos básicos, foi reeditado e atualizado diversas vezes. Nos anos 50, ajudaria a fundar, com intelectuais de variadas orientações, o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), que tanta importância teria na fixação da mentalidade do planejamento público entre nós e na generalização de uma visão mais arejada dos problemas nacionais.

Nelson Werneck Sodré mereceu implacável perseguição do furor macartista da ditadura de 64. Logo depois do golpe, foi preso e teve seus direitos políticos cassados. Já havia optado por passar para a reserva em 1962 e pretendia se dedicar ao ensino. A punição que recebeu foi dura, o impediu de lecionar e até mesmo de escrever artigos para a imprensa. Seus livros foram considerados “subversivos” e tirados dos catálogos das editoras. Muitos deles foram vendidos a preço de custo em promoções de livrarias mais ousadas. Minha primeira “biblioteca” digna do nome foi composta com livros deste tipo, que iam de Sodré e Fanon a Lukács e Gramsci, dentre outros.

Parte da esquerda também não seria muito generosa com ele: veria suas teorias como emanação direta do PCB e as empurraria para segundo plano. Nem por isso o historiador deixou de trabalhar. Porém, a despeito de sua obstinada dedicação à pesquisa, não seria assimilado pela intelectualidade acadêmica que passaria a prevalecer no país. Seria mesmo “esnobado” por ela, visto como um “dogmático”, fato que azedaria seu relacionamento com a Universidade.

Sodré se fez presente em praticamente todos os números de Temas. Naqueles anos, o Instituto Superior de Estudos Brasileiros-ISEB, havia sido redescoberto pelos pesquisadores. O velho general, que havia integrado seus quadros desde 1956, ano da fundação, não aceitava a “ressignificação” que estava em marcha. E escreveu um longo artigo sobre a “História do ISEB”, que publicamos nos números 1, 2 e 4 da revista. No terceiro e no quinto números, abriu forte polêmica com parte da produção da época, fulminando os que em seu entender transgrediam certas regras metodológicas e éticas básicas. Foram os artigos “Brasil: a luta ideológica” e “Desventuras da marxologia”, este último dedicado a um livro de Jacob Gorender. A celeuma foi intensa. Houve ponderações para que se aliviasse um pouco a crítica. Mas Sodré permaneceu inarredável. Nos derradeiros números da revista, publicou uma “Contribuição à história do PCB”, também em três etapas, recobrindo as primeiras décadas de atuação do partido.

Apesar de tratado com desdém pela universidade, Sodré não se tornou avesso ao mundo universitário. Recordo-me das cartas que trocamos e das inúmeras reuniões da Comissão de Redação da revista Temas. O general não se cansava de defender o diálogo com os jovens estudantes e pesquisadores. Achava que era preciso neutralizar as estocadas que sua linha de pensamento recebia dos intelectuais acadêmicos, que ele via como expressão perfeita da “luta ideológica” do período. Sua causa era o combate contra o autoritarismo e contra todos os que dificultavam a união das forças democráticas.

Por sua trajetória, por suas opções e especialmente pela relevância de sua obra, Nelson Werneck Sodré deveria continuar a ser lido e estudado. Seus livros estão hoje meio esquecidos, engolidos que foram pelos “novos paradigmas” e pelo aumento da produção editorial e das pesquisas acadêmicas. Mas ocupam um lugar de destaque na historiografia brasileira e são via de passagem obrigatória para todos os que desejam compreender o Brasil.

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EDER RENATO DE OLIVEIRA
3 anos atrás

Olá professor Marco, acompanho o seu trabalho há muitos anos. Venho pesquisando no doutorado a Revolução Brasileira na obra do Nelson Werneck Sodré sob a orientação do professor Paulo Ribeiro da Cunha. Estou na fase inicial da pesquisa, mas de antemão, queria pedir, quando possa, me falar mais sobre Sodré.
Grato,
Eder Renato de Oliveira

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