A hostilidade como procedimento

Ann Powell. Fire dance
Ann Powell. Fire dance
Bolsonaro cria inimigos para lhes atribuir as dificuldades de gestão e, ao mesmo tempo, para agregar sua base mais fanatizada.

Uma República democrática não pode vicejar em meio a impropérios oficiais e oficiosos que superpõem o perfunctório ao que é importante, o contingencial ao fundamental, as miudezas aos grandes planos estratégicos, o bate-boca nas redes à batalha pelas reformas indispensáveis.

Como ela se apoia na livre manifestação dos cidadãos e numa ética pública fundada no rigor e na transparência, sua conduta não pode ser comandada por atos ocultos ou enigmáticos, exceção feita, evidentemente, ao que há de “intangível” e misterioso nos jogos de poder. Não sendo possível a eliminação pura e simples desses jogos, a República se afirma a partir da regulação deles, de modo a dar curso ao controle feito pelos cidadãos. Quanto mais visíveis são os atos e as falas governamentais, quando mais claras as mensagens (verbais ou simbólicas) lançadas por juízes e parlamentares, mais a República se faz merecedora desse título.

Uma República democrática com uma democracia sacudida por frêmitos e arroubos autoritários, pelo desgoverno, pela má qualidade da representação parlamentar e pelo funcionamento errático do Poder Judiciário só pode sobreviver aos solavancos, não ganha estabilidade. Em um cenário com tais características, nenhum governo consegue governar.

A situação piora quando o governo eleito não demonstra ter desejo de governar. Não ter desejo de governar pode significar, ao mesmo tempo, não conseguir governar por falta de ideias, apoios políticos e pessoal qualificado e não querer governar por opção, pela escolha da hostilidade como procedimento, quer dizer, pela preocupação em manter o atrito e a polarização tanto para alimentar sua sectária base de sustentação, quanto para erguer uma cortina de fumaça que esconda sua inoperância governativa.

O governo Bolsonaro, no Brasil, não deseja governar no sentido de modular interesses, construir consensos e executar políticas que beneficiem a sociedade como um todo: seu propósito é mandar, usar o poder, agradar a seus nichos de seguidores, se possível mantendo a interlocução com os setores que o elegeram. Para isso, deve proceder como se estivesse num ringue permanente, no qual posa de combatente de certos aspectos que a opinião pública deplora: a “velha política”, os políticos, as esquerdas, o PT, a corrupção, o globalismo.

A hostilidade como procedimento é um método. Cria crises e inimigos para a eles atribuir as dificuldades do governo e, ao mesmo tempo, para agregar sua base mais fanatizada. “Estou tentando, quero cumprir o prometido, mas o sistema não me deixa governar”, repete o presidente em seu mantra. A culpa seria sempre da “velha política”.

Em 2018, no Brasil, com o sistema político abrindo falência e a sociedade mostrando claro apetite anti-establishment, com a situação econômica em franca piora, as correntes democráticas e de esquerda privilegiaram mais as diferenças entre elas e deixaram campo aberto para a ascensão vitoriosa da extrema-direita. Mostraram incompetência e ausência de visão estratégica. Algumas seguiram carreira-solo para buscar autoafirmação, outras para tentar conter o desgaste, outras ainda para perseguir uma revanche redentora. Cada uma a seu modo, prepararam o terreno para a eleição de Jair Bolsonaro, sem conseguir compreender as razões de sua progressiva afirmação.

A extrema-direita vitoriosa chegou ao poder espumando ódio, ideologia e sangue por todos os poros, disposta a promover a eliminação da esquerda e de suas filosofias, transformando a esquerda (e mesmo liberais democráticos progressistas) em inimigo, desprezando postulações identitárias, criminalizando gays e feministas em nome de uma imprecisa e regressista moralidade. Estigmatizou a política, os políticos e seus partidos, que a impediriam de governar. Menosprezou o ritmo democrático e o sistema de freios e contrapesos da República, sempre apelando à sociedade para atacar o “sistema”.

A adoção da hostilidade como procedimento sintonizou-se com esse estilo. Se foi capaz de manter o governo em ação (numa campanha permanente), não se mostrou suficiente para fazê-lo governar. E o governo foi frustrando parte de seus apoiadores, decepcionando a sociedade e o mercado, exibindo uma incapacidade assustadora de fazer o básico, chocando-se com os demais poderes, sem alcançar um mínimo razoável de coordenação e articulação.

Um governo sem desejo e sem capacidade de governar alimenta de modo irracional a crise – a econômica e a ético-política. Corrói a República, esvaziando os mecanismos que a dignificam, a começar da atividade política.

Oito meses após seu início, o País que se tem é muito pior do que o País que havia. Sua sorte é que ainda não se descobriu uma maneira de enfrentá-lo, não se encontrou o mapa político que mostre como a ele se contrapor com eficiência. A superação do estrago continua a depender da política e os atores democráticos necessitam entrar em cena.  No mínimo para impedir que a crise institucional emergente se desdobre em uma ruptura, que só interessará às alas ideológicas e truculentas do bolsonarismo.

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