Uma República democrática não pode vicejar em meio a impropérios oficiais e oficiosos que superpõem o perfunctório ao que é importante, o contingencial ao fundamental, as miudezas aos grandes planos estratégicos, o bate-boca nas redes à batalha pelas reformas indispensáveis.
Como ela se apoia na livre manifestação dos cidadãos e numa ética pública fundada no rigor e na transparência, sua conduta não pode ser comandada por atos ocultos ou enigmáticos, exceção feita, evidentemente, ao que há de “intangível” e misterioso nos jogos de poder. Não sendo possível a eliminação pura e simples desses jogos, a República se afirma a partir da regulação deles, de modo a dar curso ao controle feito pelos cidadãos. Quanto mais visíveis são os atos e as falas governamentais, quando mais claras as mensagens (verbais ou simbólicas) lançadas por juízes e parlamentares, mais a República se faz merecedora desse título.
Uma República democrática com uma democracia sacudida por frêmitos e arroubos autoritários, pelo desgoverno, pela má qualidade da representação parlamentar e pelo funcionamento errático do Poder Judiciário só pode sobreviver aos solavancos, não ganha estabilidade. Em um cenário com tais características, nenhum governo consegue governar.
A situação piora quando o governo eleito não demonstra ter desejo de governar. Não ter desejo de governar pode significar, ao mesmo tempo, não conseguir governar por falta de ideias, apoios políticos e pessoal qualificado e não querer governar por opção, pela escolha da hostilidade como procedimento, quer dizer, pela preocupação em manter o atrito e a polarização tanto para alimentar sua sectária base de sustentação, quanto para erguer uma cortina de fumaça que esconda sua inoperância governativa.
O governo Bolsonaro, no Brasil, não deseja governar no sentido de modular interesses, construir consensos e executar políticas que beneficiem a sociedade como um todo: seu propósito é mandar, usar o poder, agradar a seus nichos de seguidores, se possível mantendo a interlocução com os setores que o elegeram. Para isso, deve proceder como se estivesse num ringue permanente, no qual posa de combatente de certos aspectos que a opinião pública deplora: a “velha política”, os políticos, as esquerdas, o PT, a corrupção, o globalismo.
A hostilidade como procedimento é um método. Cria crises e inimigos para a eles atribuir as dificuldades do governo e, ao mesmo tempo, para agregar sua base mais fanatizada. “Estou tentando, quero cumprir o prometido, mas o sistema não me deixa governar”, repete o presidente em seu mantra. A culpa seria sempre da “velha política”.
Em 2018, no Brasil, com o sistema político abrindo falência e a sociedade mostrando claro apetite anti-establishment, com a situação econômica em franca piora, as correntes democráticas e de esquerda privilegiaram mais as diferenças entre elas e deixaram campo aberto para a ascensão vitoriosa da extrema-direita. Mostraram incompetência e ausência de visão estratégica. Algumas seguiram carreira-solo para buscar autoafirmação, outras para tentar conter o desgaste, outras ainda para perseguir uma revanche redentora. Cada uma a seu modo, prepararam o terreno para a eleição de Jair Bolsonaro, sem conseguir compreender as razões de sua progressiva afirmação.
A extrema-direita vitoriosa chegou ao poder espumando ódio, ideologia e sangue por todos os poros, disposta a promover a eliminação da esquerda e de suas filosofias, transformando a esquerda (e mesmo liberais democráticos progressistas) em inimigo, desprezando postulações identitárias, criminalizando gays e feministas em nome de uma imprecisa e regressista moralidade. Estigmatizou a política, os políticos e seus partidos, que a impediriam de governar. Menosprezou o ritmo democrático e o sistema de freios e contrapesos da República, sempre apelando à sociedade para atacar o “sistema”.
A adoção da hostilidade como procedimento sintonizou-se com esse estilo. Se foi capaz de manter o governo em ação (numa campanha permanente), não se mostrou suficiente para fazê-lo governar. E o governo foi frustrando parte de seus apoiadores, decepcionando a sociedade e o mercado, exibindo uma incapacidade assustadora de fazer o básico, chocando-se com os demais poderes, sem alcançar um mínimo razoável de coordenação e articulação.
Um governo sem desejo e sem capacidade de governar alimenta de modo irracional a crise – a econômica e a ético-política. Corrói a República, esvaziando os mecanismos que a dignificam, a começar da atividade política.
Oito meses após seu início, o País que se tem é muito pior do que o País que havia. Sua sorte é que ainda não se descobriu uma maneira de enfrentá-lo, não se encontrou o mapa político que mostre como a ele se contrapor com eficiência. A superação do estrago continua a depender da política e os atores democráticos necessitam entrar em cena. No mínimo para impedir que a crise institucional emergente se desdobre em uma ruptura, que só interessará às alas ideológicas e truculentas do bolsonarismo.