Passei minha vida adulta tendo Alberto Goldman como uma referência. Sua morte dia 1 de setembro de 2019, aos 81 anos, me deixou consternado. Sem que eu quisesse, um filme de recordações políticas se impôs.
Eu dava aulas na PUC-SP quando, no início de 1974, fui convidado por uma estudante para participar de uma reunião com um candidato a deputado estadual, na casa dela. Foi quando conheci Alberto, em meio a um grupo de jovens, muitos dos quais (como eu) sentados em almofadas espalhadas pelo chão. A reunião não se estendeu demais, mas o candidato marcou posição e impressionou. Não me lembro se cheguei a votar nele nas eleições daquele ano, mas ele, que já era deputado desde 1969, foi reeleito com uma expressiva votação pelo MDB.
Alberto fazia política no MDB, mas era ligado ao PCB, então na clandestinidade, ao qual se filiara em 1955, quando estudante de engenharia. Manteve esses vínculos ao longo da vida, mesmo quando se afastou formalmente do partido no final dos anos 1980, para retornar ao MDB, onde estava sua base eleitoral. Em 1996, ingressou no PSDB, já solidamente convencido de que a social-democracia era a melhor perspectiva. De lá para frente, sua carreira avançou com firmeza, sem que ele deixasse de conversar com comunistas, liberais, conservadores, civis e militares.
Lembro-me com orgulho da campanha eleitoral de 1978, quando Goldman fez uma “dobradinha” com Antonio Rezk, numa chapa apoiada pelo Partidão. Por iniciativa de Antonio Gadelha, que participava da coordenação da campanha, eu e Gildo Marçal Brandão fomos chamados para redigir o programa Goldman-Rezk, o que fizemos em tempo recorde e, quero crer, com bastante eficiência, dadas as circunstâncias. A chapa foi eleita e a campanha transcorreu como um fator quase épico de agregação dos comunistas paulistas, que haviam sido violentamente perseguidos e desagregados pela ditadura militar. Os assassinatos de Vladimir Herzog e Manuel Fiel Filho, em 1975, as cassações de Marcelo Gatto e Nelson Fabiano, igualmente ligados ao PCB, ainda calavam fundo e atemorizavam. A campanha serviu, entre muitas outras coisas, para lavar aquele sentimento e revigorou os comunistas, que voltaram a se organizar e a atuar.
Diálogo e articulação
Alberto foi um articulador em tempo integral, um político de posições claras e grande disposição para o diálogo. Nem sempre eu, meus amigos, colegas e companheiros estivemos de acordo com ele, mas sempre conseguimos chegar a algum entendimento. Quando ocupou a Secretaria Estadual de Administração (1988–1990), por exemplo, durante o governo Orestes Quércia, tive de conversar com ele para convencê-lo a aprovar a indicação feita pela UNESP para que eu ocupasse uma das diretorias da Fundação para o Desenvolvimento Administrativo (FUNDAP). Ao longo da segunda metade da década de 1980, divergimos bastante quanto ao tratamento e à política que os governos estaduais dispensavam às universidades paulistas.
Tenho viva na memória uma reunião que realizamos, creio que em 1988, em meio a uma greve nas universidades, que se estendia. Não havia mais diálogo. Um amigo comum, Augusto Luiz Rodrigues, ativo militante democrático e então diretor da CPFL, teve a iniciativa de organizar uma reunião informal, na casa dele, de representantes da USP, UNESP e UNICAMP com o governo estadual. Chamou para ela principalmente professores que tinham ou haviam tido militância no Partidão, que se caracterizavam pela preocupação com as consequências de uma greve que parecia não ter fim. Goldman foi o representante do governo. O pau quebrou, até mesmo porque Goldman pegou pesado contra os professores. A reunião se estendeu madrugada adentro até que uma luz se acendeu: por que não deixar as próprias universidades cuidarem de suas finanças, sem a intromissão governamental? Goldman não concordou, mas se prontificou a levar a ideia para exame dos demais secretários do governo. Alguns meses depois, Quércia assinou o decreto concedendo autonomia financeira às universidades estaduais.
Como Goldman era contrário à ideia, não sei quanto da decisão dependeu dele. Mas ele não trabalhou contra a autonomia, nem a atacou publicamente. A decisão de Quércia foi uma vitória da política e do diálogo, à qual Alberto se submeteu.
Sua militância política, transcorrida sob as legendas do MDB, do PCB e do PSDB, teve um eixo muito claro: a defesa da democracia e a unidade dos que com ela se identificam e por ela se empenham. Foi um protagonista, uma liderança. Sem sua atuação, a luta contra a ditadura e pela democratização do País teria sido muito mais difícil. A capacidade de articulação e a disposição ao diálogo deram a Goldman um papel relevante na busca de soluções para as diversas crises que acompanharam a transição para a democracia, como por exemplo a que se seguiu à derrota da emenda das eleições diretas, em 1984, que culminou com vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral em 1985. Sua presença ativa em momentos cruciais da vida política nacional – no plano federal e estadual – funcionou como uma alavanca que levava a abertura sempre mais longe, agregando pessoas, difundindo ideias e pavimentando territórios.
Alberto foi Ministro dos Transportes de Itamar Franco (1992-1995) e permaneceu deputado federal até 2006, quando foi eleito vice-governador de São Paulo na chapa de José Serra (PSDB). Foram seis legislaturas no Congresso Nacional, sendo a primeira de 1979 a 1983 e a última de 2003 a 2007.
Do Congresso ao governo estadual
Em 2010, quando Serra renunciou para disputar a Presidência da República, Goldman assumiu o governo estadual. Depois disso, não mais se candidatou, mas se manteve ativo na política, como vice-presidente do PSDB, posição da qual se contrapôs à candidatura de João Doria para a Prefeitura de São Paulo em 2012. Da contraposição nasceu uma desavença que levou Goldman a apoiar a candidatura de Marcio França (PSB) e a se tornar adversário de Dória, hoje governador de São Paulo. Em 2018, Doria esteve por trás da decisão do Comitê Municipal do PSDB de expulsar Goldman por infidelidade partidária. A direção nacional tucana, no entanto, considerou que a expulsão não tinha valor jurídico. “Não tem nenhum panaca nesse partido com condição moral de pedir a minha expulsão”, afirmou Goldman à época.
A desavença com João Dória esteve longe de ser um problema pessoal. Foi político, de grande política. Goldman entendia que a ascensão de Dória representava o fim de uma era no PSDB. Em novembro de 2018, numa entrevista à Folha, afirmou que havia terminado “um ciclo no qual o PSDB formou uma corrente social-democrata”, e essa corrente perdeu. O PSDB, porém, para ele, não estaria fadado a desaparecer ou a ser inteiramente remodelado: “Ainda é cedo para cravar que Dória tomará de assalto o partido. Até porque Doria não tem uma visão político-ideológica, é um pragmático. Se hoje ele se pendurou no Bolsonaro, poderia amanhã estar pendurado no Lula. João Doria na política é um aventureiro”.
Unidade e democracia
A derrota do PT, do PSDB e do MDB, bem como de todo campo democrático serviu de base para que Goldman refletisse sobre a vitória de Bolsonaro. Coerente com as posições que defendeu em sua militância de 50 anos, diagnosticou o problema: faltou articulação política, unidade democrática, clareza política. Na mesma entrevista acima citada, concedida a Ricardo Kotscho, Alberto não poupou o PT por ter atuado sistematicamente para se construir como partido mediante a “destruição do que seria uma social-democracia no Brasil”, abrindo as portas “para a direita mais radical, que capturou uma área conservadora da sociedade, o voto antipetista, que antes se encostava no PSDB”. Mas distribuiu as responsabilidades: “os audazes membros do Ministério Público Federal, sob o nome da moralidade, começaram a destruir o que era doente no sistema político e o que ainda era saudável. O saudável foi destruído, e não sei se consegue se recuperar. As ervas daninhas, no entanto, costumam reviver”.
Sua ideia mestra foi a unidade dos democratas, maior e mais relevante do que qualquer modalidade de frente de esquerda. A unidade democrática, que garantiu e possibilitou a saída da ditadura, seria, para ele, o critério para se pensar no País que vem sendo governado pela extrema-direita.
A última vez que estive com Alberto Goldman foi no dia do segundo turno das eleições de 2018. Votávamos na mesma seção eleitoral, na Praça Buenos Aires, nos encontramos e conversamos durante meia hora, na companhia de Deuzeni Goldman e de Péia Souza Dias. Estávamos todos amargurados e preocupados com o desfecho que se anunciava. Na despedida, Alberto repetiu uma frase que havia lançado meses atrás numa entrevista: “Podemos ser velhos, mas não podemos ser velhacos”.
Para mim, ele foi acima de tudo um articulador da democracia, uma liderança unitária e generosa, aglutinadora. Fará falta imensa.
R.I.P. Alberto Goldman (1937-2019).
Não conhecia a trajetória do Alberto Goldman. Ler esse texto foi uma dose de ânimo contra esse estado de náusea política e social. Muito obrigado por compartilhar!
Eu é que agradeço por sua leitura. Abraço
Lindo, emocionante e verdadeiro texto sobre Alberto Goldman. Não era possível concordar com tudo que pensava e dizia. O seu apoio ao Márcio França foi um desses momentos de uma trajetória mais rica e verdadeira que errática. Mas não resta dúvida, pensava grande e via adiante, quando nós mortais da política apenas conseguimos ver alguns passos adiante. Sim, fará falta. Hubber Alqueres mencionou ele e outros tantos que fazem falta à política nos dias obscuros que vivemos. Tem razão. Mario Covas, Ulysses Guimarães, Teotônio Vilella, Tancredo Neves e Alberto Goldman, fazem muita falta!
Concordo com vc, Paulo. Esses grandes políticos fazem falta, muita falta. Abraço