Mudar é preciso, mas para onde?

Láslo Moholy-Nagy, 1924.
Láslo Moholy-Nagy, 1924.
É razoável que o eleitor se sinta indeciso. Os polos muitas vezes são mais semelhantes que diferentes e não trazem programas com intenções pedagógicas.

Sente-se no ar um desejo de mudança. Tão forte que é como se pudéssemos apalpá-lo. Como está não pode ficar, ouve-se por toda parte. A democracia precisa ser defendida contra os arreganhos autoritários. A inflação come os bolsos da população, afeta os mais pobres de maneira vil. Os sintomas de uma crise aguda, múltipla, latejam sem cessar.

Os democratas se mobilizam, lançam cartas e manifestos que vocalizam a insatisfação e a disposição de luta. Atores posicionados em campos distintos se reúnem para defender a Constituição, as regras eleitorais, as urnas eletrônicas. Alerta-se para o risco que correremos se a mudança tardar, se o mau governo atual prolongar sua existência, com tudo o que exibiu nos últimos quatro anos: o desprezo pela política democrática, a falta de empatia, o descalabro administrativo, a grosseria, a ausência de compostura e de respeito presidencial ao cargo.

O desejo de mudança impregna o ar, mas não necessariamente irá vencer nas eleições de outubro próximo.

Antes de tudo, porque mudar é sempre difícil. Exige que erros e incompetências sejam reconhecidos. Exige uma compreensão profunda dos fatores que obstaculizam a mudança. Passa por deslocamentos de ideias, de hábitos, que custam a acontecer. Não é só uma troca de roupas, ou de governantes.

Mesmo que vençam os candidatos mais democráticos, não há consensos fortes sobre para onde o Brasil deve caminhar. Ninguém explica que país é este e como fazê-lo mudar de rota. Sabe-se que é preciso acabar com a fome, a miséria, as desigualdades, recuperar a economia, melhorar a educação e a segurança pública, reformar o sistema político para que produza mais governança. Mas tudo isso depende de uma logística política que não foi, até agora, explicitada. O pouco que temos tido de oferta programática (Ciro Gomes e Simone Tebet, por exemplo) não é acompanhado de uma ideia de “bloco histórico”, ou seja, de uma composição de forças com coragem e disposição para mudar a face da sociedade. Não se fala disso porque isso não existe. A sociedade parece anestesiada, conformada com sua sorte. As elites mal se movem em sentido reformador. Fica-se mais na periferia da agenda reformista do que em seu centro vital.

O desejo de mudança é diversificado e plural. Tem razões distintas e não se encarna em um único ponto do espectro político. Há muitos trânsfugas nos pontos mais fortes, Lula e Bolsonaro. Ambos parecem garantidos no segundo turno, mas ainda batalham para reter seus simpatizantes. Há um miolo que gostaria de achar um jeito de romper essa polarização. Tampouco esse miolo está unido em torno de um só nome. Além da concorrência e da falta de entendimentos internos, a “terceira via” – o centro democrático – precisa enfrentar os apelos para que se resolva a eleição no primeiro turno, ou seja, para que os votos sejam depositados desde logo no candidato com melhores condições de derrotar o autoritarismo.

Esses apelos têm algum sentido, mas não consideram o quadro todo. E se o centro democrático puder sobrepujar o extremismo e chegar ao segundo turno? Seus candidatos não poderão contribuir para desgastar as posições autoritárias? O petismo mais encarniçado não se põe nenhuma dessas perguntas, preferindo estigmatizar a “terceira via” e pedir “voto útil”. O bolsonarismo treme só de pensar nelas.

Eleições em dois turnos são um artifício para contornar escolhas plebiscitárias. Para dar aos eleitores um leque de opções que reflita a diversidade de pontos de vista que há na sociedade. A dinâmica é conhecida: você vota com o coração no primeiro turno e com a razão no segundo. No primeiro turno, os candidatos trabalham para se autofortalecer. No segundo, negociam para fortalecer a melhor saída para o País. É um sistema inteligente, pensado para expressar a heterogeneidade social, reforçar a representatividade do eleito e aumentar suas chances de fazer um bom governo. Ajuda a que o vencedor seja obrigado a negociar mais, a se compor com outras forças, a lapidar suas intenções, a não governar sozinho e sim de maneira condicionada.

Com uma polarização em plena velocidade, a lógica dos dois turnos tem dificuldades para prevalecer. Não é o eleitorado todo que a compreende. Alguns não gostam dela. E há os afoitos, os que preferem que tudo se resolva no primeiro turno, de um jeito ou de outro. A pregação pelo “voto útil” e pelo “voto estratégico” embaralha as cartas. Desejo de mudança, medo, ansiedade, insegurança e incerteza se acomodam no eleitorado, deixando-o indeciso.

Há uma cláusula aceita pelos analistas políticos que acompanham processos eleitorais mais recentes, no mundo todo: muitos eleitores fazem suas escolhas nos últimos dias das campanhas. Trancam seu voto numa caixinha de segredos, de modo a entender melhor o quadro eleitoral, ouvir vizinhos, amigos e familiares, ponderar com calma, mastigar suas dúvidas e indefinições, confiando em que da mastigação sairá a solução.

Não há bandeiras ideológicas desfraldadas nem utopias iluminando o futuro. Os polos muitas vezes são mais semelhantes entre si do que diferentes e não apresentam programas com intenções pedagógicas – que expliquem o que se pretende fazer. É razoável que o eleitor se sinta indeciso. Ele olha para seus interesses e suas expectativas, e percebe que está vazio de convicções. Não é culpa dele. Com a oferta política que tem à disposição, suas escolhas se tornam inevitavelmente dilemas.


Artigo publicado na edição impressa de O Estado de S. Paulo, 27/8/2022, p. A10.

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