A outra volta do parafuso

Nem tudo está entregue a operadores ilícitos, a conservadores reacionários e a mascarados treinados para desmobilizar. Porque áreas saudáveis também se reproduzem, pulsam e resistem. Elas estão, porém, reprimidas e sufocadas pelo bate-cabeças generalizado, pelo silêncio das lideranças, pelos frêmitos da precipitação que excita, pela falta de diálogo construtivo entre as partes.

A Presidência improvável

Temer é de certo modo uma figura paradoxal. Um presidente improvável e estranho ao modo como os brasileiros entendem a Presidência e seu ocupante. Mas, curiosamente, parece ter imprimido um estilo mais frio e opaco ao centro do poder político, o que não é pouco neste País estraçalhado por crises, pela desigualdade e pela polarização.

Paralisação se efetivou, mas não organizou a contestação

Aconteceu como se esperava. Com a paralisação dos transportes públicos, o fechamento das agências bancárias e de parte das lojas e escolas particulares, as cidades ficaram vazias. Protestos e piquetes localizados ajudaram a criar a sensação de excepcionalidade, mas a rotina da vida também mostrou sua força.

A paralisação do dia 28 se efetivou, houve adesão em todos os estados e no DF. Bagunçou o coro dos contentes, perturbou a “ordem” e subverteu a “normalidade”, mostrando que o sistema não controla tudo. Deste ponto de vista, foi um momento catártico, que deveria ser mais saudado que lamentado. Serviu de advertência.

O problema é que não ficou claro seu alvo estratégico. Milhares foram às ruas ou cruzaram os braços sem saber se a questão era defender direitos, protestar contra Temer ou fornecer gás para a candidatura de Lula. Eventualmente, foi tudo isso junto e misturado.

A paralisação deixou aberto o desafio de ser analisada e compreendida.

Ressonância

Não foi propriamente uma “greve geral”, mas os sindicatos e as centrais sindicais mostraram que têm ressonância e conseguem parar ao menos parte da atividade produtiva e sobretudo a mobilidade das pessoas. Ao lado deles, as redes sociais fizeram a convocação repercutir, produzindo aquele efeito cascata que faz com que tudo se dissemine com rapidez e não possa ser contestado. Com isso, a vontade de “fazer algo” e mostrar oposição ganhou fôlego.

O fator que dominou o dia não foi a capacidade de mobilização, mas o descontentamento, a insatisfação social, devidamente turbinada pela confusão e pela simplificação, bem retratadas nos slogans prevalecentes, tipo “fora Temer”, “querem acabar com a aposentadoria” ou “tire as mãos de nossos direitos”.

Partiu-se do suposto de que as reformas tentadas pelo governo Temer agridem direitos sociais, mas ninguém soube demonstrar, de forma cabal, quais direitos estão de fato sendo agredidos. Falou-se que a reforma trabalhista acabará com os sindicatos, mas não se discutiu a força e a representatividade que podem ter entidades mantidas pelo artificialismo do imposto sindical. Falou-se que a prevalência do negociado sobre o legislado prejudica os trabalhadores, mas não se esclareceu que a reforma valoriza os acordos coletivos que não alterem temas como FGTS e 13º salário. Não se destacou também que a reforma “enquadra” a Justiça do Trabalho, impedindo-a de complicar ou anular acertos feitos entre patrões e empregados. E assim por diante.

A ideia que se espalhou como rastilho de pólvora é que a reforma é contra os trabalhadores. E muita gente aceitou isso sem nem sequer analisar o que está sendo discutido e aprovado no Congresso Nacional.

Com a reforma previdenciária ocorre algo ainda pior, mais grave, até porque o tema tende a ser assimilado de modo dramático pela população. A reforma pretendida tem seus defeitos e seus problemas, mas não pode ser interpretada como algo regressista. Ela não liquida direitos, mas regulamenta direitos existentes. Nessa operação, algo se perde, evidentemente, mas o certo é saber se o fundamental estará mantido ou não e se as modificações serão introduzidas para alcançar a todos, e não só aos que já estão incluídos. Talvez ela tire direitos de quem tem e conceda direitos a quem não tem, e aí será o caso de discutir tudo na ponta do lápis.

O direito à aposentadoria continua tão “sagrado” quanto antes, mas agora, em vez de se aposentar aos 55 anos, os trabalhadores farão isso aos 62 ou 65 anos. A idade de aposentadoria não é um direito, mas sim regulação do direito à aposentadoria. É melhor trabalhar menos? Claro que é. Assim como é melhor se aposentar logo de cara com 100% do salário na ativa. A questão é saber se o País tem como sustentar isso, num quadro de modificações demográficas fortes e de reestruturação produtiva. Se não houver uma nova regulamentação, algum risco haverá para os benefícios ou recursos serão drenados de algum outro lugar. Dadas a correlação de forças e a lógica do sistema, é fácil imaginar onde estarão os drenos.

No ponto em que se encontra hoje, ainda em discussão, a reforma manterá muitos privilégios, que beneficiam certas categorias (juízes, policiais, professores). Esse poderia ter sido um dos focos do protesto, mas as centrais sindicais têm o rabo preso e suas corporações estão interessadas justamente na manutenção daquilo que parte da população considera injusto. Para cobrir isso, enfatizam uma injustiça geral que não se configura com clareza.

A reforma previdenciária é problemática. Pelos termos em que está sendo proposta, por quem a propõe e pelo momento. Do lado do governo, carente de força e representatividade, o cálculo é que basta apoio congressual, que pouco importa, no momento, o apoio social. Temer paga o preço de certa sobranceria e da real incapacidade de fazer política com “P” maiúsculo.

Falta de paciência

Por outro lado, na sociedade e na vida associada, não há paciência para discutir o tema. Tudo é contestado de afogadilho, impulsionado pela raiva, pela insatisfação generalizada e pelo oportunismo político. Pegou-se carona no descontentamento para criar um clima de resistência e oposição que de modo algum está organizado. Fabricou-se uma ideia de que “toda a sociedade” está contra Temer e as reformas e que isso significa que ela está automaticamente do lado da oposição, do PT e de Lula. É uma ilusão.

Muita gente parou e insuflou a paralisação sem conhecer as reformas, pura e simplesmente para contestar o governo Temer. Misturou-se tudo num bolo só: falhas e erros das reformas, problematização de direitos sociais, falta de legitimidade governamental, repulsa aos políticos e à vida atual, ressentimentos contra o impeachment de Dilma e solidariedade a Lula.

Teria sido importante que a recusa às propostas do governo viesse acompanhada de um projeto alternativo consistente e articulado, que não se limitasse ao conservadorismo do deixar tudo como está. Faltou ao movimento, porém, uma preocupação técnica mais articulada, que auxiliasse a sociedade a entender o que está em jogo e que opções existem.

Houve luta, com certeza, mas perdeu-se uma oportunidade de ouro para se esclarecer a opinião pública e demarcar o terreno das esquerdas. A polarização que amarra a ação democrática se reproduziu, opondo coxinhas a mortadelas. E a esquerda ainda está tendo de engolir a pecha de “conservadora”.

O País parou, mas na semana que vem, depois do Primeiro de Maio, quando tudo voltar a funcionar com alguma “normalidade”, a vida seguirá e pouco avanço oposicionista haverá.

Talvez não se tenha reforma previdenciária, mas nem por isso o futuro estará mais bem protegido.

Ler mais

Depois das delações, o tempo

Pode-se dizer que delação não é prova ou que faz parte do mesmo “golpe” que afastou Dilma da Presidência. Pode-se dizer que os Odebrecht deitaram e rolaram como verdadeiros donos do Brasil e agora estão querendo livrar a cara, descarregando tudo nas costas dos políticos.

Pode-se dizer o que for, mas não há como fazer de conta que nada ocorre de extraordinário, que as delações derivam de pressões indevidas ou que o Brasil se converteu numa “Nação de delatores”.

Com a divulgação das delações dos executivos da Odebrecht, o espanto se combinou com o mal-estar, tamanho foi o buraco que se abriu. Dinheiro sendo distribuído a rodo, a partir de extorsões feitas por pessoas empoleiradas no topo do poder e impulsionadas pela volúpia de empresas que escolheram correr o risco de dilapidar seu patrimônio ético e material.

As duas almas do governo Temer

De mau-passo em mau-passo, o governo Temer parece ter optado por jogar ao mar talvez o mais importante recurso de que dispõe para chegar ao porto seguro de 2018. Ao longo de alguns poucos dias, fez opções arriscadas demais e, também por isso, equivocadas.

Marco Aurélio Nogueira
Visão geral de privacidade

Este site usa cookies para que possamos oferecer a melhor experiência de usuário possível. As informações de cookies são armazenadas em seu navegador e executam funções como reconhecê-lo quando você retorna ao nosso site e ajudar nossa equipe a entender quais seções do site você considera mais interessantes e úteis.